quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A sombra de Mussolini em meio à natureza improvável de São Paulo

"Cinco cristãos que estavam em um rancho junto à costa chegaram a tal extremo que se comeram uns aos outros, restando apenas um que, por estar só, não tinha a quem comer, nem quem o comesse." Cabeza de Vaca, in "Naufrágios". 

"I read the news today, oh boy". John Lennon. 
"Remember a day before today" Richard Wright.

Aquelas improváveis leitoras e leitores fieis que ainda me acompanham sabem que a proposta destes Caldos de Cana, desde sua estreia, em dezembro de 2008, foi tentar dar vasão à curiosidade por vezes intrometida de seu autor, sempre em busca de algo que divirja do "habitual", "normal", "pontual", "factual", corriqueiro e comum - ou que, pelo menos, eu ache que divirja, levando em consideração meu próprio entendimento do que seja "habitual", "normal", "comum", etc. 

Na medida do possível, procuro "incluir-me fora" da egotrip instazap-fakebuqeana. Nesse sentido, estou mais inteiro aqui. Penso que alguma coisa aqui pode significar algo para alguém que também queira fugir dessa egotrip colonizada. Talvez seja por isso que insista em escrever, ainda que tenha sido bastante esporádica a escrita em meus anos pós-BH e pós-neurocirurgia. Ademais, a estupidez rebaixou as reflexões e debates a um nível tão raso nas redes sociais, tanto que até mesmo a ideia de "compartilhamento" rápido de informações revelou-se afinal uma enorme cloaca falaciosa de fakenews, exageros, radicalismos, absolutismos, analfabetismos, abusos e outras ignomínias e ignorâncias fétidas. Então, o uso desse modestíssimo blog e sua plataforma meio demodê é como uma quixotesca negação disso tudo. Se alguém que me lê sente relevância, empatia ou reverberações, ótimo. Se não, pelo menos eu escrevo. 

Faz parte de minha rotina de trabalho em São Paulo percorrer muitos quilômetros diários. Não tenho a menor ideia do quanto costumo rodar semanalmente, mas basicamente  percorro vários bairros da cidade e da região metropolitana, sempre ministrando aulas de Língua Portuguesa, ora para alunos de cursinho pré-Enem, ora para executivos estrangeiros. Se a diversidade quase infinita é talvez a maior característica desta megalópole, eis que de repente, e meio que sem querer, eu me vi no olho do furacão da Pauliceia - e tenho comprovado que ela continua intensamente desvairada. 

Meio de transporte preferencial: a Caloizinha companheira de aventuras urbanas em SP
Uma vez por semana, eu vou até a região do Largo do Socorro, na Zona Sul. Saio de casa por volta das 5h30 da manhã, e peladando a Caloi dobrável, sigo até o ponto de parada de ônibus que me levará por cerca de 13 km até meu destino - uma das linhas que atendem essa rota (Jardim Angela-Praça da Árvore) é também chamada também de "Jardim Lonjângela" pelos usuários. Nunca fui até o final da linha, mas parece que tem que andar mais uns 10 km pra chegar no Jardim Ângela. Hoje, uma vez terminada a aula às 8h30, com uma folga até às 14 horas devido a dois cancelamentos, resolvi descobrir onde levava a ciclovia que começa na avenida de Pinedo, no Largo. Segui pelas ruas Nossa Senhora do Socorro e Mauro Paes de Almeida, e então, para minha surpresa, eu encontrei o Parque Barragem de Guarapiranga
"Veleiros" é uma canção de Villa-Lobos com letra da poetisa Dora Vasconcellos 

Para alguém que como eu acostumou-se com a loucura barulhenta e poluída do caos urbano, foi uma surpresa e um contraste enorme: "a luz há de chegar aos corações". Estaria vendo uma miragem ou tendo uma alucinação repentina? Não sei, mas realmente eu avistei um BARCO navegando numa baía em plena metrópole. Quer dizer, eu vi UM BARCO NAVEGANDO NA CIDADE DE SÃO PAULO no intervalo do meu trabalho. O que tinha no meu café?

Mar paulistano - seria uma miragem ou estou no Reino de Circe?
Eu realmente não conhecia o parque, e somente havia visitado a Barragem de Guarapiranga uma única vez, há muitos anos, em um passeio com minhas primas paulistanas, que me levaram num tour pela cidade que eu conhecia pouquíssimo àquela época. Desta vez, foi uma sucessão de espantos: um velhinho preparando uma vara de pescar, pessoas fazendo o footing matinal, outros pais e mães de família meio gordinhos andando de bicicleta ou passeando com o cachorro... ao longe, uma paisagem que me remeteu à Baía de Paranaguá e às Ilhas do litoral paranaense. 

Numa boa pescando pessoas no mar de São Paulo.
Eu disse no MAR de São Paulo.

Bucólica paisagem - um homem brinca com o cachorro na várzea
Não há dúvidas de que o contraste berrante entre caos X calmaria me ofereceu momentos de tranquilidade, respiração e beleza de uma maneira que eu não esperava encontrar em São Paulo - ao menos, não numa manhã normal de trabalho. Entretanto, o que realmente me deixou definitvamente estupefacto, por ser algo muito singular e inimaginável, foi a descoberta do Monumento aos Heróis da Travessia do Atlântico. Erigido em homenagem aos italianos Carlo del Prete e Vitale Zachetti e ao brasileiro João Ribeiro de Barros, todos aviadores que estiveram envolvidos em uma façanha, realizada no ano de 1927: a travessia do Atlântico, feita pelos italianos partindo da Europa num hidro-avião Savoia-Marchetti S.55,  tendo pousado nas águas da Represa; que meses depois seria realizada pelo Brasileiro, no sentido inverso - pilotando solitário um modelo semelhante, batizado de "Jahu". 

Não obstante a recente e polêmica restauração e reinauguração do monumento pela Prefeitura, as placas explicativas são toscas

O Monumento foi obra do Clube Dante Aleghieri, que mandou erigi-lo em forma dum monolito de 9 metros de altura, com uma estátua no alto representando Ícaro. Mas o que assombra são os detalhes, tanto da obra, quanto de sua construção: trata-se simplesmente de um monumento em homenagem ao fascio. O fascio era um instrumento romano utilizado como símbolo da autoridade de oficiais executores de sentenças. Acabaria reinventado como símbolo de poder do ditador Benito Mussolini, que governou a Itália entre os anos 1920-1940, perpetuou o ideal fascista, e usou  como símbolo o fascio romano adaptado a um ícone composto com um machado, tendo ao fundo as cores da bandeira da Itália. Esse ícone sugeria que o fascismo seria inquebrantável, como um feixe de galhos juntos.

Sabemos como isso terminou: Mussolini, sua esposa e seus seguidores próximos foram linchados e mortos pelo povo, e tiveram seus corpos exibidos em praça pública para uma turba que urrava, por considerar as consequências da guerra na Europa fruto das políticas autoritárias do Duce. A guerra teve o fascismo aliado de Hitler e do nazismo, e isso refletiu no Brasil, como se pode ver nas fotos que ilustram este post.  

Ladeado por símbolos controversos, Ícaro voa. Em São Paulo, as asas do fascismo não derreteram completamente 

Mussolini enviou para o Brasil como presente o capitel, retirado de uma antiga ruína romana. O capitel, que ornava uma coluna no tempo de César, fora enviado pelo Duce como prova de amizade e símbolo da propagação do fascismo nessas terras paulistanas e brasileiras, e foi engastado ao monumento - projeto do escultor italiano Ottone Zorlini, a obra passou por restauro e foi reinaugurada em 2010, debaixo de muita polêmica entre aqueles que defendiam sua retirada definitiva, por tratar-se monumento de exaltação de uma das mais ordinárias doutrinas do Século XX. 
O capitel jônico em mármore: retirado de uma ruína romana, foi presente de Mussolini. 
O fascio enfeitado com a bandeira brasileira oferece uma visão aterradora. 

Do outro lado, o símbolo original, ornado com a lenda da Loba e dos Meninos. Notem as estrelas do Cruzeiro do Sul acima.

Algumas reflexões: diante deste símbolo do obscurantismo político e do nacionalismo barato, que beira à infâmia, ainda mais nesses tempos em que o que o combustível do fascismo - a ignorância e o preconceito - andam em alta na cidade, é fácil compreender por que termos hoje uma figura torpe e dona de um mau-caratismo sem igual como João Dólar como prefeito. Quase 100 anos depois do fascismo ter encantado um setor importante da comunidade ítalo-paulistana, trata-se apenas ovo da serpente que não foi devidamente queimado (talvez, nem sequer reconhecido) elodindo aos poucos, na nossa cara. Será que algum dia conseguiremos acabar com este ovo? Acredito que sim, mas demandará muita luta contra essas posições que, como se vê, ornamentam a cidade do "trabalho". Nada mais fascista, inclusive, do que plagiar símbolos e ideias.  

São Paulo é definitivamente uma grande Babilônia, surpreendente e, por vezes, assustadora e paradoxal. 

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EPÍLOGO

No fim do passeio, fui esperar o ônibus num ponto em frente à sede da Igreja Tenrikyo, e acabei viajando de volta pra casa com o missionário Takemura, que me explicou alguns dos fundamentos dessa religião, que está no Brasil há 60 anos. Fundada por Miki Nakayama (1798-1887), também conhecida por Oyassama ou Nossa-Mãe, reconhecida pelos fiéis como a porta-voz do Deus-Parens, a doutrina Tenrikyo prega uma espécie de monoteísmo com ecos panteístas, e entende a Natureza como a manifestação divina não-separada, indissociada. Segundo a doutrina, "Deus-Parens" não é apenas a origem de toda vida, mas a própria vida manifestada. Por isso, a fonte de cura para a doença da humanidade seria o reconhecer-se como uma manifestação da Natureza, e portanto, uma parte da manifestação divina. Uma vez reintegrado à Natureza de forma equilibrada e reconhecendo-se parte dela, o ser humano jamais adoeceria. Me pareceu uma religião diferente. 

Ao fim do dia, tive a oportunidade de dar uma volta numa bicicleta Brompton, simplesmente a Rolls-Royce das bikes dobráveis. E acabei bebendo umas cervejas com a Giu, para comemorar a ida do Fantasma para a final da Série D do Brasileirão.

Um dia e tanto. 


4 comentários:

  1. Um dia diferente numa São Paulo cada vez mais aterradora, pelo menos para mim, voluntariamente recolhido aqui na província. Não ligue, vivi em 1975 e 76 nessa cidade e já não gostava. As reflexões são oportunas e inquietantes. Um reparo, que não chega a comprometer nada do texto: Mussolini foi executado com sua amante, Clara Petacci. Sua segunda esposa, Rachelle Guidi foi proprietária de uma trattoria em sua vila natal, Predappio, depois da guerra, e morreu em 1979 com 89 anos. Continue nos brindando com suas cronicas! Abração! Flávio.

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  2. Um dia diferente numa São Paulo cada vez mais aterradora, pelo menos para mim, recolhido voluntariamente aqui na província. Não ligue, morei en São Paulo em 1975 e 76 e já não gostava. Apenas um reparo, que não chega a empanar o texto: Mussolini foi executado com sua amante, Clara Petacci. Rachelle Guidi, sua segunda mulher, foi proprietária de uma trattoria em sua vila natal, Predappio, depois da guerra. Morreu em 1979 com 89 anos. As reflexões são oportunas e inquietantes. Continue a nos brindar com suas cronicas. Abraço!

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  3. prezado fanucchi, obrigado pelo reparo,pela leitura e pela amizade. um abraço.

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  4. Nunca imaginei que existia um lugar assim em plena SP. Fiquei deslumbrada com sua descoberta e com seu texto sempre sublime.

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