sábado, 18 de fevereiro de 2012

Auto-entrevista de desnudamento psicológico

Fiz uma auto-entrevista. Achei pertinente publicá-la como a postagem de número 98 destes Caldos de Cana. Espero que não achem muito egocêntrica, e que possa inspirar a quem ler.  


Primeiramente, o que te inspira a escrever?
A história é curiosa. Eu gosto de escrever, e apesar de ser um bom escritor no computador, sempre gosto de escrever em papel. Algo como uma fonte de ideias que posteriormente possam se transformar em postagens, ou em textos a ser publicados e distribuídos, pelas redes sociais, pelos meios eletrônicos. Também gosto de ver minha letra manuscrita, acho bonito. Eu encontro um grande prazer quando, ao longo do tempo, vejo meus caderninhos sem pauta e com capa dura, aos poucos serem preenchidos com letrinhas, histórias, e mais ainda, quando eu os vejo completos. De certa forma, a escrita é algo como a “vaidade de quem escreve”, aquela ideia do Mário de Andrade, de que todo mundo que escreve, o faz por vaidade. E é por vaidade que um escritor mostra ou esconde o que escreve. Então, posso dizer que o que realmente me inspira a escrever é a vaidade.
Você já tem uns 7 cadernos escritos, ao longo de 10 anos. Por que não os organiza de alguma maneira, num romance, num roteiro ou num livro de contos, por exemplo?
De certo modo, eu me sinto em uma encruzilhada, quando leio tudo o que já escrevi ao longo da minha vida. Minha escrita é de alguma forma algo que uso como instrumento para dar vazão aos meus sonhos. Eu tenho sonhos intensos, coloridos, alegóricos, com enredos malucos. Dariam bons filmes de Fellini ou Buñuel, por exemplo. Ou do Zé do Caixão. Então, eu tento, com meus escritos, de algum modo compreender a intensidade destas imagens oníricas que me acompanham, e espero que isso me ajude, primeiramente, a me definir como pessoa e me ajude a lutar contra o ostracismo, me permita realizar ações menos estúpidas, mais inteligentes. Às vezes, eu cometo inumeráveis besteiras, uma atrás da outra, exatamente porque eu tenho um comportamento sanguíneo, descontrolado. Eu não controlo muito bem meus impulsos. Por um lado, eu gosto disso, mas por outro, isso me traz conseqüências com as quais eu tenho que lidar, inclusive psicologicamente. De repente, escrever é uma maneira de organizar a bagunça. Talvez seja só uma desculpa esfarrapada. Mas eu sempre estou pronto para um grande acontecimento, uma grande transformação, uma mudança radical que me permita desenvolver plenamente meus talentos escondidos e reprimidos – se é que tenho algum talento que valha a pena. Escrever é uma forma de definir e separar o que me faz bem do que me faz mal. Talvez por isso não tenha chegado a hora ainda de expor tudo o que escrevi. Quem sabe nunca chegue. Eu queria ter um Max Brod, uma amigo a quem eu ordenasse, na hora da morte, que queimasse tudo o que escrevi. Só que eu queria que, ao contrário do amigo de Kafka, que meu Max Brod realmente pusesse fogo em tudo. 
Você fala que está em luta, que quer definições. O que você espera encontrar?
Estou em luta contra a quantidade enorme e absurda de burrice que nos cerca. Luto contra minha própria burrice, e contra meu próprio egocentrismo e arrogância. Por vezes, me sinto isolado, sozinho, porque de um lado, me recuso a fazer parte da coletividade burra  a nossa volta, e afinal, eu sou apenas aquilo que sou. Mas não tem jeito, ninguém vive isolado. A carta do Tarô de Marselha “O Enforcado” fala sobre aquele personagem cujas ideias e sentimentos são tão diferentes do senso comum que, exatamente por isso, acaba sendo enviado à solitária, à masmorra, ao cadafalso. Por outro lado, o aprendizado nos torna sempre melhores, melhores amigos, melhores amantes, melhores filhos, melhores tios. Então, o tarô de Marselha nos ensina que nunca estamos presos a nada, a uma mesma carta, a uma mesma característica. O principal ensinamento junguiano que podemos encontrar no Tarô de Marselha é justamente que, assim como as cartas de um baralho, a vida está em movimento, e nunca é igual. Tudo muda o tempo todo. O autoconhecimento é importante para que possamos perceber onde estamos e para onde queremos ir, de verdade. Ninguém vive pra sempre, mas eu tenho a intuição de que minha estrada é longa, e eu tenho grande força interior, o que me impede de ser derrotado. A questão é justamente reconhecer a força que temos, dominá-la, usá-la em seu próprio benefício. O fortalecimento intelectual e espiritual é fundamental para isso. Não gosto de páginas em branco, seja em cadernos sem pauta, seja na vida.
Qual é o papel do inconsciente nisso tudo?
Eu preciso me resolver com meu inconsciente, e de alguma maneira, passar a compreender plenamente o que ele está me indicando. Por que sonhar tanto com coisas que passaram? Por que sempre a mesma sensação, nem desagradável, nem agradável, que me acompanha em muitos dos meus sonhos em que meus atos surgem como fantasmas que me atormentam? Não sei dizer. Só sei que a luz do sol ou o brilho do luar sempre me confortam e me fazem acreditar que, em breve, encontrarei exatamente o que eu procuro, e vou saber exatamente quem eu sou.
Descreva um sonho marcante que você teve ultimamente.
Um sonho interessante: eu me encontro em uma praia – sei que é uma praia porque estou no alto de uma duna, descendo, escorregando. Venta e a areia amarela e fina se confunde com a maresia. Na descida, ainda no alto da duna, observo uma figura ao longe, sentada, tentando se proteger da tempestade de areia. Olho abaixo e observo outras duas figuras na beira da praia, que também se protegem do areal. Não consigo ver o mar, pois a tempestade e a maresia não permitem. Acordo. Meu coração me prega peças e dói. Sonhei isso em 2008.
Como você interpreta esse sonho?
Naquela época, eu pensava bastante sobre o que era a felicidade para mim. Tinha dúvidas sobre a felicidade estar ligada a bens materiais, ou ao equilíbrio intelectual, emocional, psicológico, profissional. Pensava em amores impossíveis. Estou ciente de que eu sou uma boa pessoa, mas por algum motivo, algum tipo de bloqueio mental, naqueles dias, eu não me permitia aceitar isso e seguir em frente. Aquele sonho me ajudou bastante no sentido de me deixar aflorar, a perceber que é preciso desapegar de tudo para poder viver bem. O desapego não é uma rejeição: é uma forma consciente de aproveitar cada momento, cada instante e cada situação com a mais profunda, sincera e explosiva intensidade. Ninguém pode se apegar ao tempo, porque seria inútil: o tempo nos devora, é essa sua função. Devemos viver os segundos e minutos intensamente, e aproveitar de maneira profunda as alegrias da vida. E também vivenciar as tristezas, porque sempre aprendemos com elas.
De que forma você sente a paixão em sua vida?
O que será, qual será o sentido da paixão? Ou os sentidos das paixões? As paixões terão que ter sentido, ou será que o sentido é a morte da paixão? Nunca há motivo nenhum para se apaixonar. O único motivo é você se sentir vivo. Viver uma paixão é algo bom, mas sentir-se e saber-se amado e correspondido, é que faz a conexão com a vida. Cartola diz numa música “nós somos dois perdidos”. A paixão só tem sentido nisso: na perda, na perda da razão, das estribeiras, nas atitudes loucas e impensadas, impulsivas. A paixão tem caminhos que desconhecem a razão. Por razão, eu não teria nascido. Nós não teríamos vivido. Não há do que se arrepender, nunca. Apenas deve-se consentir com o “destino”. Muito além do jardim, “a paixão é um universo em que razão não podes ter” (isto é um verso de um grande poeta, meu amigo). A vida em si só faz sentido quando você sonha mais, muito mais. Não se satisfazer com os sonhos loucos da noite é acreditar sempre mais no amor. A confusão faz parte da vida. Então, por que desejar outra coisa? “Se ela virar minha cabeça, eu viro a cabeça dela”. Elas por elas! O amor consiste em troca consentida de fluídos corporais. O melhor de tudo é você ouvir o riso de alguém por quem está apaixonado toda vez que fala com essa pessoa. Paixão é você fazer rir a quem você ama. E mais, amar ouvir o outro rir e sorrir. Amar sua mente: estou apaixonadamente.
Você acredita em “inspiração”?
Eu sou um escritor intuitivo. Sempre me pergunto “por onde começar a escrever, afinal?”. Não sou nenhum Dostoiévsky, estou consciente disso. Sou apenas um André qualquer, vagamundeando de déu em déu, sem destino e incerto da maioria das coisas, com pigarro e mil ideias vagas na cabeça, escolhendo destinos perdido numa rodoviária, imaginando que ao invés de Ponta Grossa, eu deveria estar em Linhares, ou em Córdoba, ou em Aracaju, ou em Nova Iorque... Escrever pra mim é uma forma de responder – ou tentar responder – à pergunta que me atormenta desde quando eu tinha seis anos: será que eu vou realmente, finalmente, romper as velhas estruturas que me cercam e explodir, me lançar como bólide rumo ao infinito? (É claro que eu não pensava com essas palavras, aos seis anos). No entanto, tenho que pagar as contas, e percebo o quanto isso é ridículo. Eu sou um cara que gosta de rabiscar cadernos em branco, apenas isso. Na verdade, ao invés de “inspiração”, penso que é sempre possível escolher fazer o que se faz, e eu sempre acredito que muitas coisas que eu deveria fazer, farei finalmente. Uma boa fonte de inspiração é o dinheiro.
O dinheiro não vilaniza a escrita?
Pela primeira vez em minha vida, em 2011, eu consegui ser pago por coisas que escrevi. Fiquei muito feliz, porque, não sou hipócrita, essa sociedade é capitalista e nós precisamos de dinheiro se quisermos ir à Índia meditar. Não acho que o dinheiro vulgarize ou vilanize nada. Quem vulgariza ou vilaniza é você. Se você usa o dinheiro da escrita para se divertir de forma vil e vulgar num puteiro, a escolha é sua. Se usa para comprar um livro, ou assistir um concerto de Mozart, você potencializa positivamente o uso do dinheiro. Eu gosto de ser pago, e não sou fã de dar de graça a única coisa que eu posso vender. E outra, meus heróis literatos são todos vilões: Burroughs, Bukowski, Lima Barreto, Caio Fernando, Allen Ginsberg, Genet... uns canalhas imorais, que viviam atrás de um dinheirinho. Eu sempre quis ser como eles - mais na escrita do que no estar sempre atrás do dinheirinho, que fique claro. 
Para encerrar, o que você pensa que pode se tornar sua vida daqui pra diante?
Assisti há uns tempos atrás o filme “A estrada”, de Fellini, com Giulietta Masina e Anthony Quinn. Que filme belíssimo! Uma metáfora da vida e das situações humanas, demasiado humanas. Eu havia visto o filme pela primeira vez há uns 5 anos, e pude revê-lo com mais serenidade, e pensar que várias vezes eu agi como Zamparò, e de certa forma, acabei como ele, no fim da estrada, quando já não restava mais nada a não ser uma praia deserta e a noite escura, as ondas do mar, as areias e as lágrimas. Quem não se sentiu assim, uma vez na vida? Mas eu aprendi, e hoje me sinto capaz de compreender isso e não me deixar abalar tanto pelas amarguras que surgem volta e meia no meu peito de aço... Eu gosto do palhaço, mas o pior palhaço é aquele que acaba palhaço de si mesmo - sem saber que era ele o verdadeiro palhaço. É impressionante a força que um filme possui e a quantidade de interpretações possíveis, e também o que o tempo e os novos contextos, as novas revelações, podem fazer com suas interpretações daquilo que há pouco parecia terrível, e de repente, se torna banal. "Meu passado é um rio maldito" (essa é do Burroughs), mas eu sou André, estou aqui, agora, hoje, e tenho uma vida nova, inteiramente nova, diante dos meus olhos. Num certo sentido, o nível de consciência  em que você se encontra  permite que você tome conta total de todos os seus atos. É para isso que eu estou trabalhando. Nunca estive tão tranqüilo, e espero que isso continue e eu possa conquistar coisas boas, para com elas, fazer coisas boas, também, para todos os que estão do meu lado. A solidão pode ser amarga, às vezes, mas não há nada melhor para que você consiga compreender a liberdade e a necessidade de sempre seguir em frente.  Acho que é isso. 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Caranguejos com cérebro: 15 anos sem Chico Science



Depois do terrível evento social de ontem, o velório do jornalista Victor Folquening, um prodígio da sua área, morto antes dos 40, de maneira estupidamente trágica num acidente de trânsito quase banal em Curitiba,  hoje as "redes sociais" me fazem recordar que faz 15 anos que morreu Francisco de Assis França, o Chico Science. 
Eu me lembro com tristeza daquela noite de 1997, véspera de Carnaval, em que eu estava trabalhando/ aventurando num bar da Lagoa da Conceição, no verão de Floripa e tendo a meu favor o elã dos 20 anos, quando logo no início da noitada, o DJ da casa chegou e disse: "avisa a galera que o Chico Science morreu". Minha reação foi parecida a de quase todo mundo da minha geração que se ligou naqueles caranguejos com cérebro, vindos do distante e até então mítico Recife, para a afirmar a força viva, jovem e criativa da música brasileira: espanto, surpresa e tristeza. Como assim, "Chico Science morreu"? Na véspera do Carnaval, ainda? No mínimo, uma piada de mau gosto...
Lembro-me de ter ficado extremamente triste, ainda mais porque, pouco tempo antes, Chico e a Nação Zumbi fizeram um show para alguns gatos-pingados no extinto aeroanta em Ponga Trossa e... eu não fui! Nunca me redimi completamente do fato, nem quando a Nação Zumbi, uns 10 anos depois, tocou novamente em PG, num show memorável - desta vez, eu estava presente, mas aquela falta nunca será completamente sanada. 
Nunca houve dúvidas de que Chico era o maior nome da música brasileira nos anos 1990. Sua música e suas ideias eram a resposta perfeita para quando meu pai desfazia em tom de piada das "gerações coca-cola", perguntando "quem é tão marcante agora, que possa se comparar aos Beatles, Pink Floyd, Roberto e Erasmo, Chico Buarque, Elis Regina, Raul Seixas? Tua geração é pobre musicalmente". O aparecimento de Chico Science e a Nação Zumbi veio para nos redimir e me dar a resposta adequada ao conflito de gerações, Foi legal ouvir meu pai admitir "- Sim, esse rapaz é bom". E ele também ficou realmente chateado com a morte do cantor.
O empobrecimento da MPB talvez no atual momento chegue ao seu extremo mais radical, com o lixo cultural que nos é imposto goela abaixo como óleo de rícino e vendido como "música" ou "fenômeno musical". Nem vou citar nomes, porque não quero macular meu texto com o baixo-espiritismo dos íncubos sem cérebro que  se apresentam como "músicos" e tomaram conta do ambiente musical brasileiro para chafurdar e submeter nossos ouvidos aos dejetos de sua mediocridade. 
Só sei que Chico Science faz muita falta, e cada vez mais, em especial quando penso que sua carreira meteórica, seus dois discos gravados, poderiam ter sido lançados semana passada. A força é igual. Chico e o movimento que ficou conhecido como Manguebeat influenciaram definitivamente a música, a poesia, a moda, o pensamento daqueles que, como eu, tinham 20 e poucos anos entre o fim do século passado e o início deste século de incertezas. Para mim, sempre foram uma referência, uma influência que para sempre vou carregar. Tenho muitas saudades. 
Uma vez, perguntado sobre o que mais amava em sua terra, ele respondeu: "A vista do Recife a partir de Olinda, e a vista de Olinda a partir do Recife". Ironicamente, ou talvez como um louro que os deuses somente oferecem para os verdadeiros iluminados, Chico Science morreu exatamente na ponte que une Recife a Olinda, quando se preparava para participar do pré-carnaval de Olinda. 15 anos se passaram desde então. Hoje, especialmente, ainda afetado pela morte de Victor Foquening, que também era uma referência e uma influência para minha geração, carrego a amarga sensação de que o tempo implacável e cruel está nos tornando em velhos e saudosistas, e não há nada que se possa fazer a respeito. Tento lutar contra isso, mas o duro é que nem mesmo podemos nos consolar com a genialidade musical de Chico Science, ou as ironias inteligentes e a visão aguda de Victor. 
Os deuses são irônicos e cruéis com os pobres humanos. 
Nos presenteiam com uma mão e retiram implacavelmente com a outra. 

Nossa vingança é a memória.



A CIDADE (Chico Science & Nação Zumbi)

O sol nasce e ilumina
As pedras evoluídas
Que cresceram com a força
De pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam
Vigiando as pessoas
Não importa se são ruins
Nem importa se são boas
E a cidade se apresenta
Centro das ambições
Para mendigos ou ricos
E outras armações
Coletivos, automóveis,
Motos e metrôs
Trabalhadores, patrões,
Policiais, camelôs
A cidade não para
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade não para
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade se encontra prostituída
Por aqueles que a usaram
Em busca de uma saída
Ilusora de pessoas
De outros lugares,
A cidade e sua fama
Vai além dos mares
E no meio da esperteza internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos
A cidade não para
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade não para
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
Eu vou fazer uma embolada,
Um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado
Bom pra mim e bom pra tu
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus
Num dia de sol Recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior.