sábado, 14 de julho de 2012

SEXTA-FEIRA 13 NA UTI - 100.ª postagem dos CALDOS DE CANA


Dedicado à memória de Delfina Gazzolla Capoletto (1922-2012)

A cirurgia para retirada de um tumor ("cisto epidermóide têmporo-occipital direito", nome mais científico e menos opressivo - para não deixar as pessoas tão comovidas) correu perfeitamente bem, sem nenhuma alteração, tendo a duração aproximada de 4 horas. A equipe médica previa que durasse entre 2 e 3 horas, mas o tamanho do animal que eu levava no crânio surpreendeu a medicina, e ufa!, foi por pouco que não atingiu minha artéria cerebral. Se isso tivesse ocorrido, filhinhos, nosso herói estaria agora não digitando essas singelas palavras deste pessoal relato, mas com toda certeza, rígido e frio, e vocês chorando e contando piadas, e relembrando anedotas e acontecimentos inusitados que marcaram nossa convivência. Aqui nosso herói se encontra, acamado, com profenide nas veias, já tomei uma dose de M, queria tomar outra, mas o Sadi, meu enfermeiro deste turno, extremamente responsável, se recusou a fornecer a morfina tão querida... Confesso a vocês que, se em algum momento eu cheguei a ver alguma VANTAGEM em realizar uma CIRURGIA CEREBRAL, foi no fato de poder legalmente experimentar uma bela dose de M. Eu juro que queria duas, mas não sei se vão me dar. Agora, de qualquer modo, eu me sinto muito mais próximo dos meus heróis: Charles Baudelaire, William Burroughs, Billie Holliday, Charlie Parker, Orlando Silva, John Coltrane, Thomas de Quincey, e, é claro, KEITH RICHARDS, que também tem em comum comigo o fato de NÃO MORRER NUNCA e também ter se submetido a uma cirurgia no cérebro. Não me sinto nem um pouco incomodado, exceto pela maldita SONDA URETRAL, da qual não posso dizer que "encheu o saco", porque na realidade, foi justamente o contrário: a sonda ESVAZIOU MEU SACO... e como DOEU, gente, pra retirar aquilo. Fora isso, eu reagi muito bem à cirurgia, e o fato de não ter sido necessária a abertura da dura-mater, foi também um ponto positivo. Ainda estou na UTI, mas já deveria (e gostaria muito) de ter saído daqui, mas estou há pelo menos umas três horas aguardando a liberação de um quarto, para onde eu irei e onde deverei permanecer pelos próximos 3 ou 4 dias, para então, retomar minhas atividades normais. Agora, com uma cicatriz de guerra. Uma marca visível das lutas e batalhas em busca da minha auto-realização como ser humano melhor, mais feliz, menos angustiado, mais solidário, mais amoroso e mais dedicado ao trabalho criativo, em busca da transformação da sociedade, ainda que com uma contribuição pequena, mas sincera, para uma sociedade menos egocêntrica, mais inteligente. Passei a noite ouvindo Mozart, Haydn, Bach, Schumann, Auber, Danzi, Rossini, Beethoven, e também Coltrane, Duke Ellington, Charlie Parker, Chet Baker, e agora, ouço Willie Dixon, Mance Lipscomb, Howlin' Wolf, Sonny Boy Williamson, e penso que consigo compreender finalmente por que M é tão excitante e traz tanta curiosidade às pessoas. Os opiáceos são drogas fascinantes, porque nos fazem ter sonhos coloridos. Eu fechava os olhos e via cores suaves, brilhantes, leves, e me sentia como se meu travesseiro fosse uma nuvem de algodão. Acho que, paradoxalmente ao fato de estar na UTI de pois de uma bem sucedida cirurgia no cérebro (bem sucedida e bastante dolorida, também), nunca me senti tão bem depois de receber um medicamento. Três sonhos realizados: cirurgia no cérebro (RÁRÁRÁ); MORFINA na veia, e me sentir PARCEIRO de Keith Richards. A equipe médica, chefiada pelo Dr. Murilo Sousa de Meneses, que contava com o Dr. Gustavo Jung, o acompanhamento por vários outros médicos, entre eles o Dr. Alexandre Ottoni, com seu humor e alegria capixabas, Dr. Felipe, que veio de Teresina morrer de frio em Curitiba, o que traz uma carga a mais de honra ao seu trabalho, Dra. Letícia, com seu sorriso cativante, e as enfermeiras e enfermeiros Laudicéia (chefe), Cláudia, Juliana, Suselle, Camilo, Sadi, Julio Eduwirges, Vanusa, Walkíria, Adriana (que me fez duas punções!), Lisandra, Maria, Thaís, Silvana, Adriana Belarmino (CCH), as fisioterapeutas Meire e Fabiana, a cozinheira Edna, e mais uma porção de outros nomes de que infelizmente não vou lembrar, mas que sentir-se-ão aqui homenageados, acabaram, vejam só, por se tornarem todos eles, sem exceção, e pela obviedade, também MEUS HERÓIS. O que aprendi nas últimas horas? Basicamente que a dor individual é relativa, diante da dor e do sofrimento alheios. Continuo a me sentir, sobretudo UM PRIVILEGIADO: tenho uma família que me ama e deixou claro que se preocupa de verdade comigo, e sempre esteve ao meu lado; tenho amigos fiéis; tenho o privilégio de estar bem atendido, com recursos médicos, hospitalares e técnicos de altissimo nível, ser paciente de uma equipe médica que me tratou com atenção, carinho, benevolência, paciência e humanidade - isto tudo num PAÍS INJUSTO, em que muitos em estado até mesmo PIOR do que o meu  sofrem o DESCASO e a FALTA DE ASSISTÊNCIA para se tratarem e se curarem dignamente. Finalmente, me sinto privilegiado porque consegui me manter CONSCIENTE, e compreender, ainda que em escala ínfima, a tudo o que se sucede comigo neste momento, e aproveitar isso tudo para continuar meu crescimento ESPIRITUAL, INTELECTUAL E MENTAL. Minha vida já é outra,"livre de todo rancor, meu coração se abriu - E EU VENHO ABRIR AS JANELAS DA VIDA". Obrigado aos espíritos e às forças do bem e a todos os que estiveram e estão ao meu lado agora. ALLAH AKBAR.