terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Poesia concretada

Neste texto, não usarei o epíteto "Ponga Trossa" para me referir à Princesa dos Campos, como tem sido contumaz em algumas manifestações orais e escritas.

A relação com minha cidade natal, Ponta Grossa, Paraná, sempre foi marcada por múltiplas ambiguidades. Nascido e crescido aqui, desde a adolescência, fui tomado por uma espécie de obsessão: abandonar de vez a tediosa Princesinha dos Campos, a cidade conservadora, quatrocentona, retrógrada, careta, que agredia com seu retrocesso e burrice, e cujo maior símbolo foi para mim, durante o longo tempo em que aqui vivi, o sentimento constante de deslocamento e antipatia aos círculos sociais habituais, que marcou boa parte de minha trajetória. Saí, mas meu retorno é sempre marcado por sentimentos alternados, a nostalgia e a beleza junto da constatação da estupidez e rude recriação dos espaços urbanos.

No entanto, tal situação de sentir-se nômade bérbere dentro de seu próprio "lugar de origem", permitiu o treino de um olhar observador, desde tenra idade atento a detalhes que em geral passavam despercebidos, ou então eram deliberadamente desvalorizados e esquecidos pelos agentes oficiais - públicos e privados. Tal desvalorização contaminou sobremaneira o cidadão-médio e as camadas periféricas da cidade que acabou por se tornar padrão a auto-imagem negativa e destrutiva sobre o passado e a memória ao longo de várias décadas.

Por ter sido o descaso histórico objeto da análise, dos estudos e das pesquisas de intelectuais mais gabaritados do que eu no meio acadêmico, opto por escrever sobre a city de uma maneira mais poética, sentimental,  menos analítica ou marcada pela tentativa de compreender à luz da sociologia os meandros de sua transformação urbana. Optei apenas por observar, com o olhar de ex-habitante, que ainda se permite participar de algumas cenas.

Tive talvez minha maior lição de fotografia em meados de 2001, quando por acaso encontrei o fotógrafo Raul Bianchi tomando sua cerveja no balcão do antigo Fundo de Quintal na rua XV. Naquela ocasião, ele me disse: "Treine seu olhar. O bom fotógrafo é sobretudo um observador de detalhes e instantes exatos, que são irrepetíveis combinações de luz e ação. Quem observa, ainda que tenha uma câmera Xereta, conseguirá produzir boas fotos. Quem não observa, mesmo com o melhor equipamento, as melhores lentes e os melhores recursos, jamais conseguirá uma boa fotografia".

Dentro do espírito desta filosofia, as imagens que ilustram este post foram feitas com a câmera de um celular Motorola já meio capenga. Reconheço que a captação não foi das melhores - bem como a técnica do fotógrafo. Mas procurei colocar o sentimento do dia de hoje no olhar dessas fotos.

Coisas inusitadas e peculiares preencheram o dia. A começar, o encontro incomum com um beija-flor que, talvez assustado ou afetado pelo calor, sentou-se num poste e quase se deixou acariciar - quando toquei suas costas, ele saiu voando e sentou-se no fio de luz. Ao longo do dia, encontrei duas carcaças outras de beija-flores, o que me fez pensar se algum tipo de situação poderia estar causando a morte desses pássaros.
Um beija-flor vivo

A PG que busco todas as vezes que tenho a oportunidade de vir pra cá com tempo livre é a mesma que encantava meu olhar de menino-adolescente, quando eu vadiava perambulando a esmo - "parmiando" Ponta Grossa desde priscas eras.

Percebi muito cedo que a destruição do centro histórico, iniciada na década de 1970 e ainda não concluída totalmente, jogava fora não apenas o mais importante e representativo conjunto arquitetônico do Estado. Também censurava de maneira insensata e injustificada as visões da cidade às novas gerações - visões que vem sendo distorcidas, destruídas ou apagadas a partir de sucessivas decisões equivocadas dos detentores das "leis". A cidade pôs abaixo sem cerimônia, sem pudor, e por vezes de forma cínica, todas as referências históricas importantes de seu passado - a começar pela antiga Catedral de Santana, construída em 1900 e demolida em 1978 (com as bênçãos do bispo, o alvará de demolição assinado pelo prefeito e os aplausos da sociedade, que berrava pelo "progresso").  Hoje, vivemos da nostalgia e das "fotografias na parede", como diz a famosa poesia de Drummond.

Antiga catedral de Santana, demolida em 1978. (Acervo Foto Elite - Ponta Grossa)

Entretanto, ainda assim é flagrante como ainda resistem pela cidade determinadas peculiaridades, determinadas paisagens que são o contraste entre o mundo bucólico já talvez sem lugar neste tempo, e a urbe que insiste em estender suas garras e ruas e parques e conjuntos habitacionais e redes de água e esgoto e linhas de transporte público, sempre insuficientes e ineficazes para os habitantes de todos os fundos de vale e espaços inexplorados da cidade, que se tornaram condomínios no melhor estilo "pombal".

A beleza bucólica da Princesa dos Campos

Desde que cheguei, fiz alguns passeios a pé por alguns bairros e pelo centro. O que pude constatar foi que o processo de metamorfose auto-destrutiva, baseado somente na especulação imobiliária e no produto de seus dividendos, assume uma nova fase nesta segunda década do século 21 - a verticalização absurda dos espaços urbanos. É impressionante o "boom" das novas construções, marcadamente de prédios com 15, 20 andares, que começaram a se proliferar desde uns 5 anos para cá, por quase toda cidade.

O que restou da antiga Ponta Grossa e suas particularidades urbanas vai aos poucos dando lugar para construções enormes, em bairros que jamais deveriam receber prédios gigantes, mas que que acabam tendo substituídos seus espaços abertos e longas vistas do horizonte, patrimônios de todos os princesinos, pela imposição de estranha, esdrúxula e distorcida visão de "crescimento urbano" e "progresso" sem planejamento, sem pensar nas pessoas, e que vai aos poucos inviabilizando qualquer ação urbana mais eficaz para a cidade de pouco mais de 350 mil habitantes.

 Cena comum: a patrola marca o início da construção de um novo prédio sobre os escombros das casas antigas

Em todos o bairros por onde andei - Nova Rússia, Uvaranas, Oficinas, Olarias, Jardim Carvalho, Órfãs), encontrei obras, tapumes, terrenos baldios, terraplanagens, demolições, entulhos, prédios gigantes em construção, placas indicativas de novos empreendimentos e quiosques para vendas de apartamentos. O processo de demolição sistemática da cidade se manifesta uma vez mais, 40 anos depois do estúpido bota-abaixo da Catedral, do palácio episcopal, dos casarões, dos barracões e da rotunda da Rede, das instalações da indústria Adriática e das indústrias Wagner, e recentemente o prédio do Cine Império...


 Onde outrora havia um casarão, logo haverá um predião.

Tapume mostra apenas a ponta do iceberg

Ao longe, a antiga igrejinha de Uvaranas, vai sendo substituída como ponto de referência pelo prédio gigante que brota do chão


A cidade ainda resiste, de qualquer forma. Ainda há poesia pelas esquinas, pelas colinas, pelos cantos e pelos campos da Princesa. Ainda se vê o horizonte - mesmo que a visão única do nascer e do por do sol no alto do centro velho já não seja mais possível como era, em alguns pontos.

Até quando resistirá?

Prédios

Prédios que brotam do chão

Prédios que aparecem do nada 
Prédios que se impõem e se tornam donos da paisagem, da vista, do sol, do céu, do espaço, da cidade inteira



Em breve, hospede-se em um glamuroso prédio de vidro, com todo conforto

Em Aleppo é parecido. Mas lá tem uma guerra. 

Espigas tornam aos poucos PG num paliteiro

Será por isso que os beija-flores estão morrendo?

Muros que cercam a visão

Este céu tem seus dias contados

A facilidade em financiar seu apartamento

Qual o sentido em sequestrar a vista de quem não vai morar no alto da torre?

Ao fundo, o pavão misterioso católico: o bizarro disco-voador de ferro e vidro que substituiu a antiga catedral

18 andares.

Igreja dos Polacos

Em meio a tanta destruição do antigo, resistem as antigas casas de madeira

Mas o canteiro de obras parece espreitar os olhos da velha PG para roê-los










Um comentário:

  1. Cada vez que volto pra PG, não sei se sinto saudades ou raiva. Talvez raiva por sentir saudade.

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