sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

A Kronos, que seus filhos devora: 10 anos dos Caldos de Cana Independente!


HÁ EXATAMENTE 10 ANOS, EM DEZEMBRO DE 2008, eu dei início a este blog.

Mal imaginaria eu que, dez anos depois, a plataforma blogger estivesse ultrapassada.

E tampouco, que tantas coisas malucas estariam a ocorrer no meu país e em minha vida... Há dez anos, vivíamos um tempo de esperança e alegria. Jamais sonharíamos que veríamos Lula preso e o país debaixo de um golpe canalha, e que estaríamos sendo governados por uma camarilha de ladrões, traidores, cínicos, e, sobretudo, imbecis como a família Bolsonaro. Tudo muda, e assim também daqui a dez anos, tudo pode estar melhor.
Será?

Os Caldos de Cana nasceram como uma forma de registrar por escrito as impressões de uma viagem de descarrego que eu faria à Bahia, naquele ano. Foi, sem dúvidas, das melhores coisas que eu fiz - a viagem e o blog. Os Caldos deram vazão a fluxos de escrita que meio que amortizam minha frustração por jamais ter conseguido ser o escritor que eu sonhava ser, quando adolescente. E também serviram, muitas vezes, para centrar minha pisque, meus sentimentos, me ajudar a compreender minhas perdas e minha alma. É e sempre foi um espaço pessoal, personalíssimo. Me expus bastante aqui e assumo todos os erros e loucuras. Mas fico feliz que tenha conseguido, nestes dez anos, escrever ao menos UMA postagem anual (o ideal seria que este espaço fosse contínuo, mas isso também fala sobre mim - minha procrastinação, minha preguiça e minhas crises muitas vezes me impediram de escrever).

"All things must past", disse Harrison - que morreu há inacreditáveis 17 anos!

O que dizer sobre a passagem do tempo? Se para mim esta década parece nada mais do que um dia depois do outro, é óbvio que eu não sou mais aquele (palmas para mim! minha menina!); mas quem o é? Você, adorável e improvável leitora que tenha me acompanhado desde o início destes exercícios, se deu conta de que não é mais aquela mocinha de outrora?

E você, meu impossível e impensável leitor? Será que as coisas continuam iguais? Como nos reconhecíamos há dez anos? Fraternos? Parceiros? Comparsas? E agora, o que terá sobrado do nosso elã?

Nem vale a pena entristecer: ainda, com certeza, continuamos eu e vocês a exalar o vigor da vida. No entanto, não nos iludamos: o perfume do tempo vem aos poucos nos deixando marcados - o fogo é o mesmo, mas o rostinho...

Sem lógica, sem peridiocidade (a única que mantive foi a anual - desde 2008, sem falhar, em todos os anos há ao menos UMA postagem), sem pretensão alguma (que não fosse mais do que dar fluxo à consciência - ou semi-consciência - do seu autor), este blog chegou aqui.

Se fôssemos inquirir o porquê dessas mal-traçadas linhas, teria sido necessário recorrer à máxima do "Prefácio interessantíssimo", de Mário de Andrade:

"Todo escritor crê na valia do que escreve. Si mostra, é por vaidade. Si não mostra, é por vaidade também."

Aqui está um "escritor" que sempre creu na valia do que escreveu. (leia-se "crêu", e não "créu". Mas pode ser, também). Por pura vaidade, e sem o menor pudor, botei pra fora uns bons pedaços de mim. Me expus, com a consciência de todos os riscos.

Juro pra quem estiver me lendo: estou mais feliz do que triste com os resultados. Minhas expectativas se cumpriram - queria ter alguns leitores, e que este blog completasse dez anos. Acho que consegui. Graças a você, que me lê e viu alguma coisa que valeu a pena nessa trajetória.

Quanto aos sentimentos, continuam intensos e muitas vezes turvos.

Quanto às pretensões, continuam exageradas e malucas.

Queria que este blog pudesse ter mostrado pedaços da América Latina, da África, da Indochina. Fiquei por aqui, mesmo. Não me considero incompetente nem frustrado. Se eu conseguir viajar mais nos próximos anos, quem sabe este blog continue. Se não, talvez essa seja a última postagem.

Obrigado a todos e todas os que me acompanharam até agora. O descarrego responsável pelo início dos Caldos de Cana funcionou: estou muito mais feliz comigo mesmo, e não me permitirei que os idiotas que querem destruir o mundo ou torná-lo inabitável me deixem pra baixo.

Se isso aqui não tiver valor algum, valeu pela experiência. E pelos amigos e amigas que vieram (e até pelos canalhas que não são mais amigos e se foram, graças aos Deuses e Deusas da justiça).

this is it.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A sombra de Mussolini em meio à natureza improvável de São Paulo

"Cinco cristãos que estavam em um rancho junto à costa chegaram a tal extremo que se comeram uns aos outros, restando apenas um que, por estar só, não tinha a quem comer, nem quem o comesse." Cabeza de Vaca, in "Naufrágios". 

"I read the news today, oh boy". John Lennon. 
"Remember a day before today" Richard Wright.

Aquelas improváveis leitoras e leitores fieis que ainda me acompanham sabem que a proposta destes Caldos de Cana, desde sua estreia, em dezembro de 2008, foi tentar dar vasão à curiosidade por vezes intrometida de seu autor, sempre em busca de algo que divirja do "habitual", "normal", "pontual", "factual", corriqueiro e comum - ou que, pelo menos, eu ache que divirja, levando em consideração meu próprio entendimento do que seja "habitual", "normal", "comum", etc. 

Na medida do possível, procuro "incluir-me fora" da egotrip instazap-fakebuqeana. Nesse sentido, estou mais inteiro aqui. Penso que alguma coisa aqui pode significar algo para alguém que também queira fugir dessa egotrip colonizada. Talvez seja por isso que insista em escrever, ainda que tenha sido bastante esporádica a escrita em meus anos pós-BH e pós-neurocirurgia. Ademais, a estupidez rebaixou as reflexões e debates a um nível tão raso nas redes sociais, tanto que até mesmo a ideia de "compartilhamento" rápido de informações revelou-se afinal uma enorme cloaca falaciosa de fakenews, exageros, radicalismos, absolutismos, analfabetismos, abusos e outras ignomínias e ignorâncias fétidas. Então, o uso desse modestíssimo blog e sua plataforma meio demodê é como uma quixotesca negação disso tudo. Se alguém que me lê sente relevância, empatia ou reverberações, ótimo. Se não, pelo menos eu escrevo. 

Faz parte de minha rotina de trabalho em São Paulo percorrer muitos quilômetros diários. Não tenho a menor ideia do quanto costumo rodar semanalmente, mas basicamente  percorro vários bairros da cidade e da região metropolitana, sempre ministrando aulas de Língua Portuguesa, ora para alunos de cursinho pré-Enem, ora para executivos estrangeiros. Se a diversidade quase infinita é talvez a maior característica desta megalópole, eis que de repente, e meio que sem querer, eu me vi no olho do furacão da Pauliceia - e tenho comprovado que ela continua intensamente desvairada. 

Meio de transporte preferencial: a Caloizinha companheira de aventuras urbanas em SP
Uma vez por semana, eu vou até a região do Largo do Socorro, na Zona Sul. Saio de casa por volta das 5h30 da manhã, e peladando a Caloi dobrável, sigo até o ponto de parada de ônibus que me levará por cerca de 13 km até meu destino - uma das linhas que atendem essa rota (Jardim Angela-Praça da Árvore) é também chamada também de "Jardim Lonjângela" pelos usuários. Nunca fui até o final da linha, mas parece que tem que andar mais uns 10 km pra chegar no Jardim Ângela. Hoje, uma vez terminada a aula às 8h30, com uma folga até às 14 horas devido a dois cancelamentos, resolvi descobrir onde levava a ciclovia que começa na avenida de Pinedo, no Largo. Segui pelas ruas Nossa Senhora do Socorro e Mauro Paes de Almeida, e então, para minha surpresa, eu encontrei o Parque Barragem de Guarapiranga
"Veleiros" é uma canção de Villa-Lobos com letra da poetisa Dora Vasconcellos 

Para alguém que como eu acostumou-se com a loucura barulhenta e poluída do caos urbano, foi uma surpresa e um contraste enorme: "a luz há de chegar aos corações". Estaria vendo uma miragem ou tendo uma alucinação repentina? Não sei, mas realmente eu avistei um BARCO navegando numa baía em plena metrópole. Quer dizer, eu vi UM BARCO NAVEGANDO NA CIDADE DE SÃO PAULO no intervalo do meu trabalho. O que tinha no meu café?

Mar paulistano - seria uma miragem ou estou no Reino de Circe?
Eu realmente não conhecia o parque, e somente havia visitado a Barragem de Guarapiranga uma única vez, há muitos anos, em um passeio com minhas primas paulistanas, que me levaram num tour pela cidade que eu conhecia pouquíssimo àquela época. Desta vez, foi uma sucessão de espantos: um velhinho preparando uma vara de pescar, pessoas fazendo o footing matinal, outros pais e mães de família meio gordinhos andando de bicicleta ou passeando com o cachorro... ao longe, uma paisagem que me remeteu à Baía de Paranaguá e às Ilhas do litoral paranaense. 

Numa boa pescando pessoas no mar de São Paulo.
Eu disse no MAR de São Paulo.

Bucólica paisagem - um homem brinca com o cachorro na várzea
Não há dúvidas de que o contraste berrante entre caos X calmaria me ofereceu momentos de tranquilidade, respiração e beleza de uma maneira que eu não esperava encontrar em São Paulo - ao menos, não numa manhã normal de trabalho. Entretanto, o que realmente me deixou definitvamente estupefacto, por ser algo muito singular e inimaginável, foi a descoberta do Monumento aos Heróis da Travessia do Atlântico. Erigido em homenagem aos italianos Carlo del Prete e Vitale Zachetti e ao brasileiro João Ribeiro de Barros, todos aviadores que estiveram envolvidos em uma façanha, realizada no ano de 1927: a travessia do Atlântico, feita pelos italianos partindo da Europa num hidro-avião Savoia-Marchetti S.55,  tendo pousado nas águas da Represa; que meses depois seria realizada pelo Brasileiro, no sentido inverso - pilotando solitário um modelo semelhante, batizado de "Jahu". 

Não obstante a recente e polêmica restauração e reinauguração do monumento pela Prefeitura, as placas explicativas são toscas

O Monumento foi obra do Clube Dante Aleghieri, que mandou erigi-lo em forma dum monolito de 9 metros de altura, com uma estátua no alto representando Ícaro. Mas o que assombra são os detalhes, tanto da obra, quanto de sua construção: trata-se simplesmente de um monumento em homenagem ao fascio. O fascio era um instrumento romano utilizado como símbolo da autoridade de oficiais executores de sentenças. Acabaria reinventado como símbolo de poder do ditador Benito Mussolini, que governou a Itália entre os anos 1920-1940, perpetuou o ideal fascista, e usou  como símbolo o fascio romano adaptado a um ícone composto com um machado, tendo ao fundo as cores da bandeira da Itália. Esse ícone sugeria que o fascismo seria inquebrantável, como um feixe de galhos juntos.

Sabemos como isso terminou: Mussolini, sua esposa e seus seguidores próximos foram linchados e mortos pelo povo, e tiveram seus corpos exibidos em praça pública para uma turba que urrava, por considerar as consequências da guerra na Europa fruto das políticas autoritárias do Duce. A guerra teve o fascismo aliado de Hitler e do nazismo, e isso refletiu no Brasil, como se pode ver nas fotos que ilustram este post.  

Ladeado por símbolos controversos, Ícaro voa. Em São Paulo, as asas do fascismo não derreteram completamente 

Mussolini enviou para o Brasil como presente o capitel, retirado de uma antiga ruína romana. O capitel, que ornava uma coluna no tempo de César, fora enviado pelo Duce como prova de amizade e símbolo da propagação do fascismo nessas terras paulistanas e brasileiras, e foi engastado ao monumento - projeto do escultor italiano Ottone Zorlini, a obra passou por restauro e foi reinaugurada em 2010, debaixo de muita polêmica entre aqueles que defendiam sua retirada definitiva, por tratar-se monumento de exaltação de uma das mais ordinárias doutrinas do Século XX. 
O capitel jônico em mármore: retirado de uma ruína romana, foi presente de Mussolini. 
O fascio enfeitado com a bandeira brasileira oferece uma visão aterradora. 

Do outro lado, o símbolo original, ornado com a lenda da Loba e dos Meninos. Notem as estrelas do Cruzeiro do Sul acima.

Algumas reflexões: diante deste símbolo do obscurantismo político e do nacionalismo barato, que beira à infâmia, ainda mais nesses tempos em que o que o combustível do fascismo - a ignorância e o preconceito - andam em alta na cidade, é fácil compreender por que termos hoje uma figura torpe e dona de um mau-caratismo sem igual como João Dólar como prefeito. Quase 100 anos depois do fascismo ter encantado um setor importante da comunidade ítalo-paulistana, trata-se apenas ovo da serpente que não foi devidamente queimado (talvez, nem sequer reconhecido) elodindo aos poucos, na nossa cara. Será que algum dia conseguiremos acabar com este ovo? Acredito que sim, mas demandará muita luta contra essas posições que, como se vê, ornamentam a cidade do "trabalho". Nada mais fascista, inclusive, do que plagiar símbolos e ideias.  

São Paulo é definitivamente uma grande Babilônia, surpreendente e, por vezes, assustadora e paradoxal. 

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EPÍLOGO

No fim do passeio, fui esperar o ônibus num ponto em frente à sede da Igreja Tenrikyo, e acabei viajando de volta pra casa com o missionário Takemura, que me explicou alguns dos fundamentos dessa religião, que está no Brasil há 60 anos. Fundada por Miki Nakayama (1798-1887), também conhecida por Oyassama ou Nossa-Mãe, reconhecida pelos fiéis como a porta-voz do Deus-Parens, a doutrina Tenrikyo prega uma espécie de monoteísmo com ecos panteístas, e entende a Natureza como a manifestação divina não-separada, indissociada. Segundo a doutrina, "Deus-Parens" não é apenas a origem de toda vida, mas a própria vida manifestada. Por isso, a fonte de cura para a doença da humanidade seria o reconhecer-se como uma manifestação da Natureza, e portanto, uma parte da manifestação divina. Uma vez reintegrado à Natureza de forma equilibrada e reconhecendo-se parte dela, o ser humano jamais adoeceria. Me pareceu uma religião diferente. 

Ao fim do dia, tive a oportunidade de dar uma volta numa bicicleta Brompton, simplesmente a Rolls-Royce das bikes dobráveis. E acabei bebendo umas cervejas com a Giu, para comemorar a ida do Fantasma para a final da Série D do Brasileirão.

Um dia e tanto. 


sexta-feira, 28 de julho de 2017

Buda é meu Dean Moriarty

Início do trecho sem pavimentação na Estrada do Cerne


Minha amizade com Buda já tem mais de 20 anos. Nós nos conhecemos quando ainda éramos estudantes, eu de Letras, ele de Medicina Veterinária. Tínhamos amigos em comum, mas não éramos mais do que colegas naquela época. O envolvimento em um triângulo amoroso nos aproximou - ele foi namorado de uma ex-namorada minha, quando ela ainda era minha namorada (confusões juvenis, nem queiram saber...), e depois que o lance emocional se resolveu entre os três, e tudo acabou (quase) bem para todos, ficou claro que nos tornaríamos grandes amigos.


Desde então, Buda tem sido uma espécie de fiel escudeiro, e nós nos alternamos entre os papéis de Dom Quixote e Sancho Pança um para o outro. Na verdade, toda vez que nós pegamos a estrada juntos, eu o vejo como um Dean Moriarty moderno e tupiniquim, dirigindo de maneira que para a maioria das pessoas pareceria insana e irresponsável, mas é absolutamente segura: um carro velho, mas em boas condições mecânicas, tanque cheio, fazendo de tudo para economizar nos detalhes, e aproveitar ao máximo tudo o que a estrada pode oferecer. Buda foi dono de um fusca vermelho 1978 por mais de dez anos - um carro que chegou às suas mãos através da minha mediação, numa das situações jodorowskyanas que nos envolveram ao longo de nossas vidas - o antigo dono do carro, meu amigo, acabara de me falar que iria vendê-lo; dez minutos depois, eu encontro o Buda vindo de um trabalho de 6 meses prestando serviços técnicos e veterinários ao MST em Santa Catarina, com o dinheiro do acerto, me dizendo "Quero comprar um carro". Eu o levei ao proprietário do fusca, eles fecharam o negócio - não sem antes Buda pechinchar, para fazer jus às origens libanesas. Aquele carro protagonizou altas aventuras, com Buda, sua esposa e sua filhinha, e outras pessoas, ele sempre indo atrás de uma montanha ou parede para escalar, ou uma boa praia para nadar, ou um rio ou campina para acampar, fazendo dessas coisas um pretexto para pegar a estrada, e da estrada, um complemento essencial para os seus objetivos de vida. Ele nunca se envolveu em um acidente. Ele jamais foi parado em uma blitz. É lícito dizer que ele é um dos melhores, mais sérios, humanos, competentes e honestos veterinários que eu conheço. E continua assim, até hoje. Uma dessas aventuras vividas com o Vermêio foi narrada neste blog algum tempo atrás. Se quiser ler ou reler, clique aqui.  Há outra, também, envolvendo sexta-feira 13 e Zé do Caixão, a qual eu pretendo dar publicidade em seu tempo adequado. 

Desta vez, decidi acompanhá-lo de São Paulo a Ponta Grossa, na última semana. Seria uma excelente viagem de férias, e com certeza, uma nova aventura a ser vivida - nós sabíamos que parte do acordo da viagem deveria incluir, necessariamente, alguma aventura, em busca de um olhar ou situação inusitadas. Esse sempre foi o espírito de toda e qualquer viagem que eu tenha feito com Buda, e não poderia ser diferente nessa ocasião. Eram já 3 e meia da manhã quando saímos da Vila Mariana. Depois de cruzarmos a cidade em direção à avenida das Nações Unidas, pegamos a rodovia Régis Bittencourt BR-116 Sul - mas somente depois de nos perdermos na saída de SP e perder uns 50 minutos pelo caminho errado e voltando pelo caminho certo. À noite, na estrada tudo correu tranquilo: não havia tanto tráfego, e vínhamos em uma velocidade média de 100 km/h. 

Buda vendeu o fusca Vermêio há uns dois anos, e hoje ele viaja com um Volkswagen Gol CL branco 1998, que recebe o mesmo tratamento do velho fuquinha: jamais é lavado, tem um acúmulo de fuligem corrompendo a tinta automotiva, as janelas sebosas, e uma enorme teia de aranha ornando painel, do lado do passageiro. Também é cheio de penduricalhos, ferramentas de escalada, capacete, cordas, sapatilhas, um cachorrinho de pelúcia (apelidado de Bury), garrafas d´água, e sabe-se lá mais o quê. 
Uma enorme teia de aranha ornava o painel, do lado do passageiro

Lá pelas 5h, com o dia já nascendo e o frio tomando conta do interior do carro. Nos postos de pedágio, parávamos no Centro de Apoio aos Usuários para encher a garrafa de café e nos aquecer um pouco, enquanto conversávamos e seguíamos o caminho da estrada. Tivemos sorte no primeiro pedágio - o café havia acabado de ser passado, estava quentinho e era bom. Nas outras duas paradas, só café ruim. 

Mais ou menos às 10 da manhã, chegávamos a Curitiba. Decidimos atravessar a cidade, pela Rua Presidente Carlos Cavalcanti, até a avenida Manoel Ribas, que liga o bairro das Mercês à Santa Felicidade, e segue até a Estrada do Cerne - PR 090, uma das últimas estradas paranaenses ainda não 100% asfaltadas, e que obviamente, é um lugar belíssimo, de paisagem humana e natural muito bem preservadas, um local onde ainda se vê e se sente o Paraná polonês com todas as suas características, e que é a estrada que passa ao lado da Escarpa Devoniana, área de preservação natural que corre o risco de ser severamente diminuída, caso passe um projeto de lei capitaneado pelos lobbistas do agronegócio, que querem transformar o local numa grande plantação de soja e pinus illiotis. É bem possível que esses canalhas que querem destruir o mundo, ou torná-lo inabitável, consigam seus intentos.

A sequência mostra uma das várias paradinhas para tomar café.














A aventura estava realmente começando agora. Paramos para um café no final de Santa Felicidade, quase já em Campo Magro, e seguimos em frente, em direção à Campo Magro. No distrito de Bateias, avistamos uma casa de madeira em estilo polaco-paranaense, que abrigava um bar. Resolvemos parar, e conhecemos um dos bares mais antigos e tradicionais do Paraná, com 75 anos de funcionamento. Ali, comemos um salsicho, bebemos uma cerveja e seguimos viagem. 
O dia amanhece pela janela do carro
Curitiba

Doces na padaria em Santa Felicidade

Hit the road again!
A Estrada do Cerne é simplesmente linda. Como disse acima, mantém ainda conservada a cultura polaco-paranaense. Entre Curitiba e Ponta Grossa, pelo Cerne, são cerca de 140 km - pouco mais de 20 do que se fizéssemos o caminho pela BR-376 - a Rodovia do Café - que contém dois pedágios caríssimos, o que é um inconveniente bastante considerável. É uma vergonha que se pague quase R$ 20 por pouco mais de 100 km de estrada. A concessão das rodovias do Paraná à empresas privadas é uma máquina de fazer dinheiro, e é indignante pagar isso para se locomover. Por isso também o Cerne é uma opção alternativa que vale a pena. O trecho asfaltado tem mais ou menos 60 km, e o restante é a mesma estrada de chão que fazia a ligação de Curitiba com o interior do Estado (Ponta Grossa, Castro e o Norte Pioneiro) durante mais de cem anos. Com a inauguração da BR-376, nos anos 1970, o Cerne foi preterido pela maioria dos motoristas, e sua utilização ficou restrita aos moradores da Região. 
Pausa para um flash

O caminho é preenchido por uma paisagem humana e natural únicas, que juntas formam uma beleza peculiar. Estávamos com a sorte ao nosso lado: o tempo estava ótimo, um dia de sol e céu azul ciano, com a típica paisagem de inverno dos Campos Gerais do Paraná. Veem-se casas, agricultores, animais, vendedores de produtos da terra, árvores, cavalos, riachos, pontes e regatos, com a onipresente araucária por quase toda a estrada. 

Antigo bar no caminho das Tropas
Os frequentadores parecem também eles terem vindo de um tempo que já não mais existe



Comendo poeira

Uma velha casa, sede de uma das inúmeras pequenas propriedades da região

Regra budista #1: JAMAIS lave seu carro

No meio da mata, uma igrejinha



Ao passarmos por um vendedor de cebolas, pedi ao Buda que parássemos para comprar uma trança, e também porque eu não poderia perder a oportunidade de utilizar o coletivo réstia , que quase sempre utilizo como exemplo nas aulas de português, mas que raramente é efetivamente utilizado no dia a dia da maioria dos falantes. "Bom dia, senhor. Quanto é a réstia?" "A réstia é dez reais". Comprei uma e fotografei as belíssimas e suculentas cebolas. 

Belíssimas réstias de cebolas por R$10, direto do produtor
ESTA HISTÓRIA CONTINUA... 

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Poesia concretada

Neste texto, não usarei o epíteto "Ponga Trossa" para me referir à Princesa dos Campos, como tem sido contumaz em algumas manifestações orais e escritas.

A relação com minha cidade natal, Ponta Grossa, Paraná, sempre foi marcada por múltiplas ambiguidades. Nascido e crescido aqui, desde a adolescência, fui tomado por uma espécie de obsessão: abandonar de vez a tediosa Princesinha dos Campos, a cidade conservadora, quatrocentona, retrógrada, careta, que agredia com seu retrocesso e burrice, e cujo maior símbolo foi para mim, durante o longo tempo em que aqui vivi, o sentimento constante de deslocamento e antipatia aos círculos sociais habituais, que marcou boa parte de minha trajetória. Saí, mas meu retorno é sempre marcado por sentimentos alternados, a nostalgia e a beleza junto da constatação da estupidez e rude recriação dos espaços urbanos.

No entanto, tal situação de sentir-se nômade bérbere dentro de seu próprio "lugar de origem", permitiu o treino de um olhar observador, desde tenra idade atento a detalhes que em geral passavam despercebidos, ou então eram deliberadamente desvalorizados e esquecidos pelos agentes oficiais - públicos e privados. Tal desvalorização contaminou sobremaneira o cidadão-médio e as camadas periféricas da cidade que acabou por se tornar padrão a auto-imagem negativa e destrutiva sobre o passado e a memória ao longo de várias décadas.

Por ter sido o descaso histórico objeto da análise, dos estudos e das pesquisas de intelectuais mais gabaritados do que eu no meio acadêmico, opto por escrever sobre a city de uma maneira mais poética, sentimental,  menos analítica ou marcada pela tentativa de compreender à luz da sociologia os meandros de sua transformação urbana. Optei apenas por observar, com o olhar de ex-habitante, que ainda se permite participar de algumas cenas.

Tive talvez minha maior lição de fotografia em meados de 2001, quando por acaso encontrei o fotógrafo Raul Bianchi tomando sua cerveja no balcão do antigo Fundo de Quintal na rua XV. Naquela ocasião, ele me disse: "Treine seu olhar. O bom fotógrafo é sobretudo um observador de detalhes e instantes exatos, que são irrepetíveis combinações de luz e ação. Quem observa, ainda que tenha uma câmera Xereta, conseguirá produzir boas fotos. Quem não observa, mesmo com o melhor equipamento, as melhores lentes e os melhores recursos, jamais conseguirá uma boa fotografia".

Dentro do espírito desta filosofia, as imagens que ilustram este post foram feitas com a câmera de um celular Motorola já meio capenga. Reconheço que a captação não foi das melhores - bem como a técnica do fotógrafo. Mas procurei colocar o sentimento do dia de hoje no olhar dessas fotos.

Coisas inusitadas e peculiares preencheram o dia. A começar, o encontro incomum com um beija-flor que, talvez assustado ou afetado pelo calor, sentou-se num poste e quase se deixou acariciar - quando toquei suas costas, ele saiu voando e sentou-se no fio de luz. Ao longo do dia, encontrei duas carcaças outras de beija-flores, o que me fez pensar se algum tipo de situação poderia estar causando a morte desses pássaros.
Um beija-flor vivo

A PG que busco todas as vezes que tenho a oportunidade de vir pra cá com tempo livre é a mesma que encantava meu olhar de menino-adolescente, quando eu vadiava perambulando a esmo - "parmiando" Ponta Grossa desde priscas eras.

Percebi muito cedo que a destruição do centro histórico, iniciada na década de 1970 e ainda não concluída totalmente, jogava fora não apenas o mais importante e representativo conjunto arquitetônico do Estado. Também censurava de maneira insensata e injustificada as visões da cidade às novas gerações - visões que vem sendo distorcidas, destruídas ou apagadas a partir de sucessivas decisões equivocadas dos detentores das "leis". A cidade pôs abaixo sem cerimônia, sem pudor, e por vezes de forma cínica, todas as referências históricas importantes de seu passado - a começar pela antiga Catedral de Santana, construída em 1900 e demolida em 1978 (com as bênçãos do bispo, o alvará de demolição assinado pelo prefeito e os aplausos da sociedade, que berrava pelo "progresso").  Hoje, vivemos da nostalgia e das "fotografias na parede", como diz a famosa poesia de Drummond.

Antiga catedral de Santana, demolida em 1978. (Acervo Foto Elite - Ponta Grossa)

Entretanto, ainda assim é flagrante como ainda resistem pela cidade determinadas peculiaridades, determinadas paisagens que são o contraste entre o mundo bucólico já talvez sem lugar neste tempo, e a urbe que insiste em estender suas garras e ruas e parques e conjuntos habitacionais e redes de água e esgoto e linhas de transporte público, sempre insuficientes e ineficazes para os habitantes de todos os fundos de vale e espaços inexplorados da cidade, que se tornaram condomínios no melhor estilo "pombal".

A beleza bucólica da Princesa dos Campos

Desde que cheguei, fiz alguns passeios a pé por alguns bairros e pelo centro. O que pude constatar foi que o processo de metamorfose auto-destrutiva, baseado somente na especulação imobiliária e no produto de seus dividendos, assume uma nova fase nesta segunda década do século 21 - a verticalização absurda dos espaços urbanos. É impressionante o "boom" das novas construções, marcadamente de prédios com 15, 20 andares, que começaram a se proliferar desde uns 5 anos para cá, por quase toda cidade.

O que restou da antiga Ponta Grossa e suas particularidades urbanas vai aos poucos dando lugar para construções enormes, em bairros que jamais deveriam receber prédios gigantes, mas que que acabam tendo substituídos seus espaços abertos e longas vistas do horizonte, patrimônios de todos os princesinos, pela imposição de estranha, esdrúxula e distorcida visão de "crescimento urbano" e "progresso" sem planejamento, sem pensar nas pessoas, e que vai aos poucos inviabilizando qualquer ação urbana mais eficaz para a cidade de pouco mais de 350 mil habitantes.

 Cena comum: a patrola marca o início da construção de um novo prédio sobre os escombros das casas antigas

Em todos o bairros por onde andei - Nova Rússia, Uvaranas, Oficinas, Olarias, Jardim Carvalho, Órfãs), encontrei obras, tapumes, terrenos baldios, terraplanagens, demolições, entulhos, prédios gigantes em construção, placas indicativas de novos empreendimentos e quiosques para vendas de apartamentos. O processo de demolição sistemática da cidade se manifesta uma vez mais, 40 anos depois do estúpido bota-abaixo da Catedral, do palácio episcopal, dos casarões, dos barracões e da rotunda da Rede, das instalações da indústria Adriática e das indústrias Wagner, e recentemente o prédio do Cine Império...


 Onde outrora havia um casarão, logo haverá um predião.

Tapume mostra apenas a ponta do iceberg

Ao longe, a antiga igrejinha de Uvaranas, vai sendo substituída como ponto de referência pelo prédio gigante que brota do chão


A cidade ainda resiste, de qualquer forma. Ainda há poesia pelas esquinas, pelas colinas, pelos cantos e pelos campos da Princesa. Ainda se vê o horizonte - mesmo que a visão única do nascer e do por do sol no alto do centro velho já não seja mais possível como era, em alguns pontos.

Até quando resistirá?

Prédios

Prédios que brotam do chão

Prédios que aparecem do nada 
Prédios que se impõem e se tornam donos da paisagem, da vista, do sol, do céu, do espaço, da cidade inteira



Em breve, hospede-se em um glamuroso prédio de vidro, com todo conforto

Em Aleppo é parecido. Mas lá tem uma guerra. 

Espigas tornam aos poucos PG num paliteiro

Será por isso que os beija-flores estão morrendo?

Muros que cercam a visão

Este céu tem seus dias contados

A facilidade em financiar seu apartamento

Qual o sentido em sequestrar a vista de quem não vai morar no alto da torre?

Ao fundo, o pavão misterioso católico: o bizarro disco-voador de ferro e vidro que substituiu a antiga catedral

18 andares.

Igreja dos Polacos

Em meio a tanta destruição do antigo, resistem as antigas casas de madeira

Mas o canteiro de obras parece espreitar os olhos da velha PG para roê-los