sábado, 16 de março de 2013

A flor do deserto


crédito da imagem: www.dipity.com


Esta história me contou uma pessoa muito especial.
Naquela época, eu caminhava sem rumo por um grande deserto, onde só se se via pedras e poeira. Raramente, algum animal peçonhento cruzava meu caminho. Apesar do perigo e da doença que esses animais representavam, era até bom encontrá-los, porque de algum modo, eles me traziam esperança e certeza na vida que existia além do deserto. 
Um dia, depois de muito andar, para meu grande espanto, pois jamais esperava encontrar nada ali além de miséria e solidão, eu dei de cara com uma flor. Era uma flor linda, única, rara e de uma beleza exótica, bela e misteriosa que, por vezes, cortava com seus espinhos. Pensei em fazer como o Pequeno Príncipe e protegê-la com uma redoma. Quando estava prestes a fazer isso, a Flor acordou, olhou no fundo dos meus olhos, e disse:
- Homem que não deixou de ser menino. O que pensa em fazer?
- Linda Flor, quero protegê-la dos perigos do deserto.
- Não, Homem. Você, na verdade, quer proteger a si mesmo. Você pensa que se me proteger, vai encontrar segurança, a segurança de que eu nunca o abandonarei. Mas na verdade, você vai apenas me prender. Você deseja segurança, mas não sabe o que é isso de verdade.
- E o que é segurança, linda Flor? Perguntei eu, entre o espantado e o desorientado.
- Segurança tem a ver com confiar. Se você confia, está seguro. 
- Mas eu confio em você, linda Flor! Por que não estou seguro?
- Porque, na verdade, você não precisa confiar em mim, mas sim em si mesmo. Se você confia em si, terá a segurança de que precisa. Você compreenderá que confiar é deixar quem você ama livre. É jamais interferir nos sonhos, desejos e vontades do outro. Você saberá que confiar em si o deixará livre para amar integralmente, sem que seja necessário que o outro o ame, porque, quando você ama ao outro, na verdade, você está amando a si mesmo. E se você ama a si mesmo, terá segurança de que jamais se perderá de novo no deserto.
Ouvi aquelas palavras, abandonei a redoma, despedi-me da flor, andei mais alguns passos e saí do deserto.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Gratidão

Para G.


Então, eu acordei e percebi que precisava externar o quanto eu te agradeço.
Agradeço por tudo, por você ter estado ao meu lado - e também por não ter estado.
Quando você estava comigo e eu me sentia elevado, transmudado, acordado, e tudo parecia fazer sentido. Você andando comigo, suas mãos de dedos grandes e macios, braços longos, corpo esguio. Seu andar siamês, que tanto me fazia sorrir, porque eu enxergava ali a magia felina e feminina ancestral, que fazia você parecer para mim tão normal e tão fora do normal. E eu me orgulhava de ter o amor siamês, misterioso, presente naquele olhar que era tão esguio quanto seu corpo deslizando entre minhas mãos. Eu agradeço por sua respiração. Seu pulmão cheio de fumaça e de ar, seu coração que batia e eu sentia, e que parecia tantas vezes que batia junto ao meu. Agradeço pelo sangue que corre em suas veias, que permitiu que você vivesse, e tantas vezes se deixasse levar por minhas histórias, pelas bobagens e coisas supostamente inteligentes que eu dizia. E agradeço por você rir das coisas que só você sabia que eram inocentes, bobas, mas que eu achava que eram inteligentes. Eu sabia o quanto você sentia cada palavra e talvez as compreendesse mais e melhor do que eu. Eu agradeço por suas palavras, ditas de forma nem sempre terna, mas que em todas as vezes me encantavam, me deixavam ciente de que a vida é ouvir a palavra sussurrada ou mesmo gritada, vinda do fundo do peito e da garganta da pessoa amada. Eu agradeço por você ter sido minha pessoa amada. Agradeço por você ter me tirado do sério, ter me feito perceber o quanto é preciso cometer loucuras por amor, o quanto é preciso renunciar para poder somar. Agradeço por você existir e por ter existido em minha vida. Você me mostrou o que é a vida. O que a vida pode ser, o que ela poderia ter sido. Você me mostrou que a escuridão mental em que eu por vezes vivia envolvido não fazia sentido. O sol fazia sentido, mesmo em dias de chuva, em que ficávamos olhando pela janela a água cair, e sonhávamos, falávamos, pensávamos em voz alta sobre as coisas que faríamos na chuva e no sol. Agradeço por você ter sido meu sol. Agradeço por você ter me mostrado que por detrás da minha força aparente, havia uma fragilidade constante, e que eu nunca deixei de ser senão um menino mimado. Agradeço pelos sonhos, por ter me permitido sonhar no quanto poderíamos ter sido felizes e fortes, e em quanto eu e você juntos mudaríamos o mundo, agradeço por você ter me feito perceber que isso, sim, era possível. E nós mudamos o mundo! O mundo não é mais o mesmo depois que você me levou a perceber o quanto tínhamos poder de fazer tudo o que quiséssemos. 
Agradeço por seu cheiro, por seus pés, por seu pescoço, por sua língua e sua boca, por seus cabelos macios e finos que caíam em minha cara e me faziam espirrar enquanto eu dormia. Agradeço pelas vezes em que você me fez cair da cama. 
Agradeço por sua orelha fria, e por sua alma quente. Agradeço por você ter entrado e se instalado em minha mente, de onde muito provavelmente jamais vai sair. 
Agradeço por você existir. Sem você, o que seria de mim? Pobre de mim! Andaria vagando feito alma penada, buscando, buscando, buscando o que eu mesmo não sei, nunca soube, mas que na verdade estava em você e com você. Agradeço por cada segundo. Agradeço a forma absurda como você me descobriu, e depois, como aceitou meu convite para passear num carro velho para um lugar desconhecido. Agradeço a sua coragem por não ter se despedido e seguido seu caminho. Talvez nem você nem eu teríamos acreditado, naquele momento, no quanto isso tudo seria intenso, seria profundo, seria eterno, seria perene. Eu agradeço por você, na maior parte do tempo, ter acertado, e por eu ter estado errado. 
Eu agradeço também por tudo ter mudado, ter se transformado. Agradeço pelo aprendizado. Agradeço por você ter me ensinado coisas que eu ainda não aprendi por completo, mas que calam em meu peito e me deixam melhor, mais forte. 
Agradeço por eu e você termos errado. Agradeço por você não ter estado comigo quando eu precisei, porque eu pude perceber o quanto era importante ter alguém para quem oferecer as coisas, abrir a alma, oferecer a vida.
Agradeço pelos erros, pelas brigas, pelas desconfianças, pelas diferenças, porque essas diferenças mostram que sempre é preciso melhorar, e também mostram que na verdade, as diferenças são apenas complementos, que preenchem e deixam completas as almas que se cruzam. 
Agradeço por sua paciência, por você ter se resignado à minha eloquência louca e sem sentido, minha insegurança e minha confusão mental.
Agradeço por você ter me estapeado, me feito acordar, me feito sorrir e me feito chorar.
Agradeço por nunca termos tido nenhum tipo de pudor em assumir o quão louco, demente, e por vezes, até mesmo indecente foi nosso amor.
Agradeço por me fazer tremer de medo e por ter percebido o quanto é preciso ter coragem para amar. 
Agradeço pelas bebedeiras que tantas vezes nos tiraram do sério e nos fizeram cometer loucuras descontroladas, nem sempre tão boas, mas sempre muito intensas. Agradeço por me fazer acordar de madrugada sozinho e olhar para as estrelas e pensar qual delas era você, qual delas era eu. E pensar que elas brilham eternamente, e que mesmo uma estrela linda, brilhante, pode às vezes cortar.
Agradeço por você ter me mostrado que um homem pode chorar, agradeço por você ter me provado que eu preciso melhorar, preciso me transformar. Agradeço por você ter me feito sentir vergonha do que eu sou, do modo como às vezes agi. Agradeço por você ter acreditado nas vezes em que eu menti. Agradeço por você ter se doado, ter sonhado e ter acreditado que eu e você não éramos "eu" e "você", mas éramos nós. Agradeço por você ter sido muito mais madura do que eu, e também por ter sido muito mais imatura, também. Agradeço por você ter me sufocado, me transtornado, me agarrado como quem se agarra à própria vida. Eu posso ter entendido tudo errado, mas agora vejo que é isso o que move o mundo, e mesmo que tudo esteja terminado, eu penso no quanto isso foi fecundo, no quanto me fez compreender melhor meu mundo.
Agradeço por sua vida, sua forma, sua loucura, seu amor, sua alma, seu corpo, seus olhos, e agradeço cada segundo que vivemos e sonhamos e beijamos e amamos e brigamos e quebramos coisas e rasgamos o coração.
Agradeço por me fazer ter certeza de que nunca, jamais, em nenhuma dimensão, universo, vida, espaço, continente, você vai estar fora de mim, ainda que talvez nunca mais esteja perto, ainda que o sentimento de culpa seja a coisa mais horrível e inútil a se sentir agora. 
Agradeço por você estar em cada esquina e em nenhum lugar.
Agradeço por você me fazer voltar a cantar e, mesmo assim, nunca ter me visto cantar. 
Agradeço por ter tido a oportunidade de te amar, mesmo que talvez eu não tenha conseguido me expressar, e tenham sido meus erros a incapacidade de me explicar, minha incapacidade de me controlar, minha incapacidade de devolver tudo de maneira maior, como você merecia.
Agradeço por ter certeza de estar melhor, como pessoa, depois de você.
Agradeço pelos corações partidos e por pensar que eles poderiam ter se enchido de tudo o que realmente importa.
Mas agora, eu sei, Inês é morta.