domingo, 24 de julho de 2011

"Adeus" apenas com palavras


E este blog não encontra palavras, sem parecer piegas, chorão ou carpideira mórbida, pra dizer o quanto Amy Winehouse vai fazer falta neste mundo insosso, cheio de mauricinhos, menininhas superficiais e zés-manés sem graça.
Também imagino que os falsos-moralistas, os moedeiros do templo, hão de me condenar, como condenaram em vida esse cometa judeu de Londres, que nos encantou, elevou nosso espírito, embalou nossas fossas, neste curto período em que pudemos privar de sua voz.
Mas tudo bem, os falsos-moedeiros jamais terão nem sequer a capacidade de compreendê-la, nem sequer a sombra de seu talento, que agora, é apenas saudades.
Uma vez mais a velha história da heroína, amada por todos, menos por si mesma.
Uma lástima.
E o sinal irrefutável de que o tempo não para.

"We only say goodbye with words
I died a hundred times 
You go back to her 
And I go back to black"

domingo, 3 de julho de 2011

A morte torna a todos bons

Morreu Itamar Franco, ex-presidente da República, ex-governador e Senador.
A repercussão sobre o seu passamento foi floreada de exéquias, honrarias, elogios. A mídia oficial fez seu papel uma vez mais, incensando a aura do morto como um "estadista", um "político honesto", um "homem de visão", que esteve sempre ao lado do povo, e que, mesmo quando longe de sua querida Minas Gerais, jamais deixava de glorificar suas raízes.
Tudo muito bom, muito bonito. Comovente observar as manifestações de políticos, como o atual governador mineiro, Antonio Anastasia (que me dá azia) "emocionado", chorando ao ler um discurso em homenagem ao ex-presidente. Também foi lindo ver o senador Aécio Neves, o narigudo beberrão, eleito na dobradinha com Itamar Franco ao Senado da República, falar da "longa parceria", e de que a perda de Itamar era como "perder um pai". 
E o que dizer da presidenta Dilma, que decretou luto oficial por uma semana, e falou em "exemplo de honradez"? E do ex-presidente Lula, para quem sem Itamar "a democracia não teria se consolidado"? E do senador Fernando Collor, que chamou o falecido de "companheiro digno, ético e coerente"? E FHC, que o fez "incorruptível", um homem "a quem deve muito"?
Poderíamos seguir com vários exemplos dos mais altos elogios, de nobres dignatários de nosso poder, ao falecido político mineiro. 
A mídia, sempre a serviço de factóides, e sem nenhum lapso de auto-crítica, repercute a ideia de que o Brasil ficou órfão de um grande estadista. 
Muito interessante. Entretanto, a morte do político me fez lembrar de algumas coisas que, enquanto estava vivo o homem, não condiziam muito bem com a imagem angelical que se tenta passar após sua morte.
Pra começar, lembro que na época em que foi galgado ao epicentro do poder, como vice-presidente de Fernando Collor, afastado no mês de junho de 1992, e que terminaria por renunciar ao mandato para evitar o impeachment (que assim mesmo sofreria), Itamar era visto como um personagem quase folclórico. Sua postura como vice-presidente em um momento de crise, repetindo uma vez mais as inúmeras vezes em nossa história em que a democracia esteve por um fio por conta da vacância do cargo-mor de nossa República, colocou o político mineiro, conhecido por sua parcimônia, nas cordas. 
Ele pedia à imprensa que não o tratasse como "presidente", mas como "vice-presidente no exercício da presidência", e assim foi até que Collor deixou o Planalto pela porta dos fundos.
Lembro bem a sensação que se tinha à época: éramos país sem governo, com um presidente constrangido, surpreso e sem ação. 
Por isso mesmo, Itamar foi retratado como um homem de atitudes lentas, de dúvidas, que não se sentia confortável diante das responsabilidades que o momento histórico lhe impunha.
Um exemplo disso é a charge do cartunista Paixão, publicada em 1993 pelo jornal Gazeta do Povo, de Curitiba. O presidente retratado como um caracol, e seu famoso topete fazendo as vezes da casinha do bicho que rastejava entre indecisões e falta de atitude de um governo morno:
Na charge de Paixão, Itamar é comparado a um caracol.
Ao morrer, Itamar foi chamado de "um homem de visão futurista" por vários articulistas. Uma imagem e tanto para um político que pediu à maior montadora de automóveis do país que voltasse a fabricar seu modelo mais antigo, fora de linha há quase dez anos e símbolo do atraso de uma indústria que havia sido acusada por seu antecessor de fabricar "carroças". Segundo as crônicas da República do Pão de Queijo, o pedido na verdade era uma promessa do presidente a sua namorada, que era apaixonada pelo modelo.

Itamar Franco, um homem futurista, cavalga o modelo mais anacrônico da Volkswagen

Itamar, o político exemplar e honrado, exaltado como "namorador" pela imprensa após a sua morte, foi protagonista de uma das mais constrangedoras gafes já cometidas por um chefe de estado. No carnaval de 1993, em pleno Sambódromo, o "namorador" Itamar foi fotografado ao lado da atriz pornô Lílian Ramos, em uma imagem que correu o mundo e envergonhou a Presidência da República - sem falsos moralismos, afinal, o Brasil é um país do sexo. Mas convenhamos, não fica bem para o cargo que ocupava o Presidente da República ser fotografado bêbado, acompanhado de seu ministro da Justiça, Maurício José Corrêa, também alcoolizado, numa farra  ao lado de uma piriguete com a genitália exposta.
Itamar e a perereca que abalou a República. Neste momento, o ministro da Justiça dormia em algum canto do camarote.

A posse, depois de seis meses em que o "vice no exercício da Presidência" deixou o país sem governo. À sua esquerda, o então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, companheiro de Itamar no Sambódromo. Ao fundo, FHC, ainda inexpressivo ministro da Fazenda.
Para finalizar, a ideia de um estadista que era fiel parece contraproducente quando observamos a carreira de Itamar Franco. Eleito Senador pela primeira vez em 1974, na onda dos votos de protesto que colocaram em xeque a Ditadura Militar na primeira eleição desde o Golpe, Itamar foi na maior parte de sua vida filiado ao PMDB. Mas, em 1986, contrariado por não conseguir a indicação de sua candidatura ao governo de Minas, deixou o partido e filiou-se ao PL. 
Campanha de Itamar Franco ao Senado, em 1974. O prefeito inexpressivo foi eleito na onda oposicionista que pôs em xeque o Regime Militar.
Em 1989, filiou-se à legenda de Fernando Collor, o extinto PRN, para se candidatar à vice-presidência da República. Catapultado pela crise do impeachment à presidência da República, voltou ao PMDB antes de terminar seu governo, quando elegeu Fernando Henrique Cardoso na onda Real. Afastou-se de FHC, a quem chamou de "traidor", por se considerar passado para trás durante o golpe da reeleição (Itamar pretendia se candidatar à presidência novamente em 1998), e apoiou Lula, tanto em 1998 quanto em 2002.  Com a eleição do ex-metalúrgico, foi presenteado com a Embaixada em Portugal. Mas como desejava um ministério, viu-se outra vez desprestigiado pelo Planalto e voltou à oposição.
Itamar e Collor tomam posse em 1990.
Os dois ex-presidentes se reencontram no Senado, em 2011.
 Finalmente, em 2010, aos 80 anos de idade e sem anunciar a doença que acabaria por levá-lo à morte, foi eleito Senador oposicionista pelo PPS, numa dobradinha com Aécio Neves, em chapa que tinha na primeira suplência ninguém menos que o cartola Zezé Perrella, dirigente do Cruzeiro Esporte Clube, que agora se vê galgado ao Senado e ganha imunidade parlamentar num momento em que é acusado de inúmeras falcatruas, tráfico de influências e corrupção. 
FHC toma posse com apoio de Itamar, que poucos anos depois o acusaria de traição.
Itamar apoia Lula em 2002. Queria um ministério, recebeu a Embaixada em Portugal. Passou logo à oposição.

Itamar apoia Serra em 2010. A morte do político não permitiu saber quais seriam seus próximos passos.

Morto, Itamar Franco passa à galeria dos heróis nacionais, ainda que em vida sua trajetória tenha sido irregular e controversa.

Zezé Perrella: rindo à toa pela imunidade parlamentar adquirida sem nenhum voto, e que o livra de condenações e processos.  A última obra de Itamar.



Esse foi Itamar Augusto Cautieiro Franco, um mineiro nascido em Salvador, um camaleão que deixa a vida para entrar na história mórbida de um país que costuma transformar seus mortos em heróis, ainda que para isso seja preciso reescrever e reinterpretar os fatos.