terça-feira, 20 de novembro de 2012

REFLEXÕES SOBRE O INOMINÁVEL

Hoje faz exatamente 129 dias desde a última postagem. 129 dias! Como eu pude abandonar por tanto tempo este blog? 

Deuses dos canaviais! Perdoai este vosso servo ingrato!! 
Leitores destes esporádicos Caldos de Cana! Compreendais que o autor deste blog passou por inúmeras situações inusitadas, surpreendentes, horripilantes, divertidas, auto-irônicas, mas todas permeadas por emoções o mais subjetivas, pessoais e profundas possíveis. Humanas, demasiado humanas emoções! Mas agora que o verão se aproxima, todos poderão refrescar a cuca novamente com o Caldo de Cana mais doce da blogosfera. I´m back! Aceita um docinho?
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Desde que fui diagnosticado com a lesão cerebral, cuja gravidade era notória, evidente, nua e crua, tive que tomar decisões. Quando você recebe a notícia de que há um tumor em seu cérebro, de repente, percebe que tem de decidir, em poucos segundos, o que fazer com sua vida. E isso acontece imediatamente após o  médico-residente, responsável pelas orientações pré-cirúrgicas lhe entregar um papel, e dizer: 

- Bom, agora que tudo foi explicado, você deve assinar este documento médico-contratual, em que afirma que está plenamente consciente de que será submetido a uma cirurgia no cérebro. Também declara saber que, em alguns casos específicos, diante de certas condições cirúrgicas e certas reações que variam entre pacientes, há registros de óbitos durante procedimentos cirúrgicos similares ao seu. Caso queira desistir do processo, você tem o direito de comunicar isso à equipe médica enquanto estiver consciente. Por favor, leia e assine aqui, em três vias. Use a rubrica nas demais folhas. Obrigado.

Eu já havia compreendido que, caso quisesse continuar vivo, seria necessário me entregar ao processo.  Havia algumas células anômalas, que por alguma razão, resolveram iniciar seu processo de crescimento ao lado de uma das minhas principais artérias cerebrais. Só me restava a cirurgia. E eu resolvi que sairia o melhor possível deste processo.

Decidi que não me importaria com o que aconteceria depois do processo cirúrgico, a não ser quando este depois se tornasse realidade. Não quero dizer, com isso, que me alienei: em todos os momentos, eu fiz questão de conversar com o mais novo herói de meu panteão, o Professor Doutor Murilo de Sousa Meneses, e toda sua equipe, a respeito dos procedimentos a que eu seria submetido. Sempre tive consciência de todos os riscos envolvidos, ouvi detalhes sobre a recuperação, o pós-operatório, e também fui informado claramente sobre o procedimento cirúrgico em si. 
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Assim, no dia 12 de julho de 2012, entre as 9 e as 10 horas de uma manhã fria, tipicamente curitibana, fui anestesiado com Propofol, e em 20 segundos, eu me encontrava dormindo profundamente. Quando voltei, cerca de 4 horas e meia depois, foi como se estivesse acordando de um sono profundo e muito tranquilo. Ouvi a voz da médica-anestesista chamando:

- André... André... André...
- Oi, doutora! Tudo bem?
- Tudo ótimo. A cirurgia foi perfeita. Retiramos toda a lesão. Agora, vamos levá-lo para a UTI, onde você ficará em observação pelas próximas 24 horas. 

Neste exato momento, me deu vontade de cantar. A primeira canção que me veio à lembrança foi o Samba da boa vontade, de Noel Rosa e Braguinha. Enquanto a médica e uma enfermeira guiavam minha cama rapidamente pelos corredores do hospital, eu cantarolava "viver alegre hoje é preciso/ conserva sempre o teu sorriso/ mesmo que a vida esteja feia/ e que vivas na pinimba/ passando a pirão de areia".

A médica me disse, assim que a música acabou, já no quarto da UTI:
- Olha, André. Eu já havia visto gente chorando, pedindo pela mãe, rezando, mas cantando samba, é a primeira vez.

Nesse estado de espírito, fui colocado na cama. Como nem tudo são rosas nesta vida, assim que me trocaram de lugar, percebi o pior: havia uma sonda uretral pendurada no meu pênis, para recolher urina. Delícia. 30 centímetros de um caninho emborrachado e liso enfiado na uretra. (Rapaz, isso vai doer MUITO para ser retirado, mas só os fortes sobreviverão). Da mesma forma como controlei a ansiedade antes da cirurgia, resolvi não sofrer por antecipação, e deixei de me preocupar com a sonda.
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 Momento Kim Jong iL.
 Momento Arnaldo Antunes.
Momento Boris Karloff.
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No quarto, havia uma TV de 30 polegadas. Deixei nos canais de música e fiquei ouvindo música erudita, jazz, e um pouco de rock, o tempo todo em que estive na UTI. Passei 27 horas lá. A cada duas horas, eu recebia doses de Decadron 4mg, Paracetamol 750mg. Recebi também duas doses da solução injetável de Tramal 100mg, por conta de fortes dores de cabeça. Foi minha primeira experiência com opióides, cujos efeitos eu conhecia apenas através da literatura.  Numa daquelas coincidências que só poderiam ocorrer com um paciente da UTI, depois de uma cirurgia cerebral, no mesmo instante em que eu senti o primeiro o efeito analgésico e reconfortante da droga, no canal de Jazz da TV, soavam os primeiros acordes de Out of this world, de John Coltrane. 
Ouvir John Coltrane sob o efeito de um opiáceo me lembrou de Ewan McGregor, afundando em um tapete vermelho no assoalho, ao som de Perfect day, numa das melhores cenas de Trainspotting. 
Eu gostei  realmente daquilo.
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Diria que todo o processo foi profundo, recheado de reflexões, análise das situações e auto-análise constante. Um aprendizado. Um curso intensivo de neurocirurgia para leigos, tendo seu próprio corpo como objeto de estudo. Acontecimento inusitado, ímpar. Em nenhum momento imaginei outra coisa que não  uma recuperação perfeita. Sempre tive absoluta convicção de que se tratava de um daqueles raros momentos que jamais se repetiriam da mesma maneira em minha vida.  Aceitei a complexidade do processo e reagi de acordo com isso.  

Penso ter me saído muito bem.
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Nunca fui supersticioso. Mas há outra coincidência que me divertiu bastante em toda essa história: na sexta-feira 13 de julho, eu estava internado na UTI, ouvindo Mozart, Bach, Haydn e Beethoven, com doses homeopáticas e pontuais de John Coltrane. Por um pequeno contratempo, a terceira consulta pós-operatória, pela qual eu esperava ansiosamente para ouvir os resultados positivos dos últimos exames, e ser declarado curado e finalmente poder, entre outras coisas, voltar a pedalar, foi transferida do dia 22 para o dia... 31 de outubro
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Noel Rosa no caminho pra UTI, Tramal e John Coltrane para dor de cabeça, 24 horas na UTI em plena sexta-feira 13, liberação total dos cuidados pós-operatórios em pleno Haloween. Se isso tudo não tivesse realmente acontecido comigo, da forma como está narrado neste post, eu confesso, teria dificuldades em acreditar. Aliás, algumas pessoas se demonstraram realmente surpresas com minha recuperação. Eu respondia, geralmente: "Se você está surpreso, imagine como eu estou". 
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Pra terminar, quero dizer que foi realmente divertido vivenciar tudo isso. Não vejo outra palavra para melhor definir esse acontecimento. Me chamem de maluco, se quiserem, mas talvez tenha sido o melhor que já me aconteceu, até o presente momento. E eu estou realmente decidido a superar, ou no mínimo igualar,  esse lampejo de iluminação e intensidade que me foi concedido por uma via que eu jamais poderia imaginar. Para fazer isso, tenho apenas dado sequência ao modo de pensar que antecedeu a cirurgia, que consiste em compreender o seguinte: não importa o que você sinta, nem o que sonhe, nem o que pense, nem o que deseje, a vida acontece agora, neste exato momento. E é neste exato momento que devemos tornar nossos sonhos, sentimentos, pensamentos e desejos concretos e reais. Alejandro Jodorowsky declarou uma vez: "O Paraíso é aqui. Se Deus não está aqui, não está em nenhum outro lugar. Não pode estar aqui e estar em outro lugar além. Só aqui. Tudo é aqui.".
Eu passei a levar a sério esta declaração, de uma forma realmente sincera.
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POST SCRIPTUM.

Uma das consequências da cirurgia foi a mudança de caminho. Resolvi voltar a me dedicar a um projeto musical, e junto com meus amigos Fabrício Cunha, Rodrigo Milek, Marcelo Teixeira e Vinícius Baniski, reunimos conjunto Cabide de Molambo (clique no link anterior e neste link aqui também par ver vídeos da banda) para produzir o espetáculo "A favela vai abaixo", com músicas de Sinhô e Noel Rosa. Este evento, na verdade, vinha sendo planejado antes mesmo da cirurgia, e sua concretização significa, para mim, uma libertação de tudo o que eu não quero fazer mas vinha fazendo de maneira desgostosa e sem sentido.
Fazem parte do repertório a canção de Sinhô que dá nome ao espetáculo, além de Sabiá, Fala meu louro, e também Último desejo e Positivismo, de Noel, entre outras composições. Não quero estragar a surpresa. 
Quinta-feira, publicarei o set list completo através da fanpage no facebook. Digite /molambos e nos encontre por lá.
O espetáculo acontece nesta quarta-feira, dia 21 de novembro, a partir das 20 horas, no Centro de Cultura, rua Doutor Colares, 436, em Ponta Grossa, Paraná. Vale lembrar que o conjunto não se apresenta em Ponta Grossa desde 2006. Então, vai ser um reencontro com nosso público.
Mesmo com isso, estamos abertos a convites para apresentações fora de PG, algo que realmente gostaríamos muito de fazer. Se você tem interesse ou conhece alguém que queira levar o Cabide tocar aí na sua cidade, por favor, entre em contato.
E aos que estão de bobeira em Ponta Grossa ou nas proximidades, compareçam! Vai ser um show antológico.





sábado, 14 de julho de 2012

SEXTA-FEIRA 13 NA UTI - 100.ª postagem dos CALDOS DE CANA


Dedicado à memória de Delfina Gazzolla Capoletto (1922-2012)

A cirurgia para retirada de um tumor ("cisto epidermóide têmporo-occipital direito", nome mais científico e menos opressivo - para não deixar as pessoas tão comovidas) correu perfeitamente bem, sem nenhuma alteração, tendo a duração aproximada de 4 horas. A equipe médica previa que durasse entre 2 e 3 horas, mas o tamanho do animal que eu levava no crânio surpreendeu a medicina, e ufa!, foi por pouco que não atingiu minha artéria cerebral. Se isso tivesse ocorrido, filhinhos, nosso herói estaria agora não digitando essas singelas palavras deste pessoal relato, mas com toda certeza, rígido e frio, e vocês chorando e contando piadas, e relembrando anedotas e acontecimentos inusitados que marcaram nossa convivência. Aqui nosso herói se encontra, acamado, com profenide nas veias, já tomei uma dose de M, queria tomar outra, mas o Sadi, meu enfermeiro deste turno, extremamente responsável, se recusou a fornecer a morfina tão querida... Confesso a vocês que, se em algum momento eu cheguei a ver alguma VANTAGEM em realizar uma CIRURGIA CEREBRAL, foi no fato de poder legalmente experimentar uma bela dose de M. Eu juro que queria duas, mas não sei se vão me dar. Agora, de qualquer modo, eu me sinto muito mais próximo dos meus heróis: Charles Baudelaire, William Burroughs, Billie Holliday, Charlie Parker, Orlando Silva, John Coltrane, Thomas de Quincey, e, é claro, KEITH RICHARDS, que também tem em comum comigo o fato de NÃO MORRER NUNCA e também ter se submetido a uma cirurgia no cérebro. Não me sinto nem um pouco incomodado, exceto pela maldita SONDA URETRAL, da qual não posso dizer que "encheu o saco", porque na realidade, foi justamente o contrário: a sonda ESVAZIOU MEU SACO... e como DOEU, gente, pra retirar aquilo. Fora isso, eu reagi muito bem à cirurgia, e o fato de não ter sido necessária a abertura da dura-mater, foi também um ponto positivo. Ainda estou na UTI, mas já deveria (e gostaria muito) de ter saído daqui, mas estou há pelo menos umas três horas aguardando a liberação de um quarto, para onde eu irei e onde deverei permanecer pelos próximos 3 ou 4 dias, para então, retomar minhas atividades normais. Agora, com uma cicatriz de guerra. Uma marca visível das lutas e batalhas em busca da minha auto-realização como ser humano melhor, mais feliz, menos angustiado, mais solidário, mais amoroso e mais dedicado ao trabalho criativo, em busca da transformação da sociedade, ainda que com uma contribuição pequena, mas sincera, para uma sociedade menos egocêntrica, mais inteligente. Passei a noite ouvindo Mozart, Haydn, Bach, Schumann, Auber, Danzi, Rossini, Beethoven, e também Coltrane, Duke Ellington, Charlie Parker, Chet Baker, e agora, ouço Willie Dixon, Mance Lipscomb, Howlin' Wolf, Sonny Boy Williamson, e penso que consigo compreender finalmente por que M é tão excitante e traz tanta curiosidade às pessoas. Os opiáceos são drogas fascinantes, porque nos fazem ter sonhos coloridos. Eu fechava os olhos e via cores suaves, brilhantes, leves, e me sentia como se meu travesseiro fosse uma nuvem de algodão. Acho que, paradoxalmente ao fato de estar na UTI de pois de uma bem sucedida cirurgia no cérebro (bem sucedida e bastante dolorida, também), nunca me senti tão bem depois de receber um medicamento. Três sonhos realizados: cirurgia no cérebro (RÁRÁRÁ); MORFINA na veia, e me sentir PARCEIRO de Keith Richards. A equipe médica, chefiada pelo Dr. Murilo Sousa de Meneses, que contava com o Dr. Gustavo Jung, o acompanhamento por vários outros médicos, entre eles o Dr. Alexandre Ottoni, com seu humor e alegria capixabas, Dr. Felipe, que veio de Teresina morrer de frio em Curitiba, o que traz uma carga a mais de honra ao seu trabalho, Dra. Letícia, com seu sorriso cativante, e as enfermeiras e enfermeiros Laudicéia (chefe), Cláudia, Juliana, Suselle, Camilo, Sadi, Julio Eduwirges, Vanusa, Walkíria, Adriana (que me fez duas punções!), Lisandra, Maria, Thaís, Silvana, Adriana Belarmino (CCH), as fisioterapeutas Meire e Fabiana, a cozinheira Edna, e mais uma porção de outros nomes de que infelizmente não vou lembrar, mas que sentir-se-ão aqui homenageados, acabaram, vejam só, por se tornarem todos eles, sem exceção, e pela obviedade, também MEUS HERÓIS. O que aprendi nas últimas horas? Basicamente que a dor individual é relativa, diante da dor e do sofrimento alheios. Continuo a me sentir, sobretudo UM PRIVILEGIADO: tenho uma família que me ama e deixou claro que se preocupa de verdade comigo, e sempre esteve ao meu lado; tenho amigos fiéis; tenho o privilégio de estar bem atendido, com recursos médicos, hospitalares e técnicos de altissimo nível, ser paciente de uma equipe médica que me tratou com atenção, carinho, benevolência, paciência e humanidade - isto tudo num PAÍS INJUSTO, em que muitos em estado até mesmo PIOR do que o meu  sofrem o DESCASO e a FALTA DE ASSISTÊNCIA para se tratarem e se curarem dignamente. Finalmente, me sinto privilegiado porque consegui me manter CONSCIENTE, e compreender, ainda que em escala ínfima, a tudo o que se sucede comigo neste momento, e aproveitar isso tudo para continuar meu crescimento ESPIRITUAL, INTELECTUAL E MENTAL. Minha vida já é outra,"livre de todo rancor, meu coração se abriu - E EU VENHO ABRIR AS JANELAS DA VIDA". Obrigado aos espíritos e às forças do bem e a todos os que estiveram e estão ao meu lado agora. ALLAH AKBAR.

sábado, 28 de abril de 2012

Felicidade

Voltar para o palco do Cine-Teatro Ópera, depois de tantos anos, foi realmente muito emocionante.
Cercado de grandes músicos - Marcelo Teixeira no violão de sete cordas, Marcelo Hilgenberg no bandolim, Luciano Guerini na guitarra e Iê dos Santos no pandeiro - e com um público maravilhoso cantando juntos, isso tudo me deixou muito feliz. 
Crédito da imagem: Luana Caroline do Nascimento, projeto Lente Quente http://www.flickr.com/photos/lentequente/

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Auto-entrevista de desnudamento psicológico

Fiz uma auto-entrevista. Achei pertinente publicá-la como a postagem de número 98 destes Caldos de Cana. Espero que não achem muito egocêntrica, e que possa inspirar a quem ler.  


Primeiramente, o que te inspira a escrever?
A história é curiosa. Eu gosto de escrever, e apesar de ser um bom escritor no computador, sempre gosto de escrever em papel. Algo como uma fonte de ideias que posteriormente possam se transformar em postagens, ou em textos a ser publicados e distribuídos, pelas redes sociais, pelos meios eletrônicos. Também gosto de ver minha letra manuscrita, acho bonito. Eu encontro um grande prazer quando, ao longo do tempo, vejo meus caderninhos sem pauta e com capa dura, aos poucos serem preenchidos com letrinhas, histórias, e mais ainda, quando eu os vejo completos. De certa forma, a escrita é algo como a “vaidade de quem escreve”, aquela ideia do Mário de Andrade, de que todo mundo que escreve, o faz por vaidade. E é por vaidade que um escritor mostra ou esconde o que escreve. Então, posso dizer que o que realmente me inspira a escrever é a vaidade.
Você já tem uns 7 cadernos escritos, ao longo de 10 anos. Por que não os organiza de alguma maneira, num romance, num roteiro ou num livro de contos, por exemplo?
De certo modo, eu me sinto em uma encruzilhada, quando leio tudo o que já escrevi ao longo da minha vida. Minha escrita é de alguma forma algo que uso como instrumento para dar vazão aos meus sonhos. Eu tenho sonhos intensos, coloridos, alegóricos, com enredos malucos. Dariam bons filmes de Fellini ou Buñuel, por exemplo. Ou do Zé do Caixão. Então, eu tento, com meus escritos, de algum modo compreender a intensidade destas imagens oníricas que me acompanham, e espero que isso me ajude, primeiramente, a me definir como pessoa e me ajude a lutar contra o ostracismo, me permita realizar ações menos estúpidas, mais inteligentes. Às vezes, eu cometo inumeráveis besteiras, uma atrás da outra, exatamente porque eu tenho um comportamento sanguíneo, descontrolado. Eu não controlo muito bem meus impulsos. Por um lado, eu gosto disso, mas por outro, isso me traz conseqüências com as quais eu tenho que lidar, inclusive psicologicamente. De repente, escrever é uma maneira de organizar a bagunça. Talvez seja só uma desculpa esfarrapada. Mas eu sempre estou pronto para um grande acontecimento, uma grande transformação, uma mudança radical que me permita desenvolver plenamente meus talentos escondidos e reprimidos – se é que tenho algum talento que valha a pena. Escrever é uma forma de definir e separar o que me faz bem do que me faz mal. Talvez por isso não tenha chegado a hora ainda de expor tudo o que escrevi. Quem sabe nunca chegue. Eu queria ter um Max Brod, uma amigo a quem eu ordenasse, na hora da morte, que queimasse tudo o que escrevi. Só que eu queria que, ao contrário do amigo de Kafka, que meu Max Brod realmente pusesse fogo em tudo. 
Você fala que está em luta, que quer definições. O que você espera encontrar?
Estou em luta contra a quantidade enorme e absurda de burrice que nos cerca. Luto contra minha própria burrice, e contra meu próprio egocentrismo e arrogância. Por vezes, me sinto isolado, sozinho, porque de um lado, me recuso a fazer parte da coletividade burra  a nossa volta, e afinal, eu sou apenas aquilo que sou. Mas não tem jeito, ninguém vive isolado. A carta do Tarô de Marselha “O Enforcado” fala sobre aquele personagem cujas ideias e sentimentos são tão diferentes do senso comum que, exatamente por isso, acaba sendo enviado à solitária, à masmorra, ao cadafalso. Por outro lado, o aprendizado nos torna sempre melhores, melhores amigos, melhores amantes, melhores filhos, melhores tios. Então, o tarô de Marselha nos ensina que nunca estamos presos a nada, a uma mesma carta, a uma mesma característica. O principal ensinamento junguiano que podemos encontrar no Tarô de Marselha é justamente que, assim como as cartas de um baralho, a vida está em movimento, e nunca é igual. Tudo muda o tempo todo. O autoconhecimento é importante para que possamos perceber onde estamos e para onde queremos ir, de verdade. Ninguém vive pra sempre, mas eu tenho a intuição de que minha estrada é longa, e eu tenho grande força interior, o que me impede de ser derrotado. A questão é justamente reconhecer a força que temos, dominá-la, usá-la em seu próprio benefício. O fortalecimento intelectual e espiritual é fundamental para isso. Não gosto de páginas em branco, seja em cadernos sem pauta, seja na vida.
Qual é o papel do inconsciente nisso tudo?
Eu preciso me resolver com meu inconsciente, e de alguma maneira, passar a compreender plenamente o que ele está me indicando. Por que sonhar tanto com coisas que passaram? Por que sempre a mesma sensação, nem desagradável, nem agradável, que me acompanha em muitos dos meus sonhos em que meus atos surgem como fantasmas que me atormentam? Não sei dizer. Só sei que a luz do sol ou o brilho do luar sempre me confortam e me fazem acreditar que, em breve, encontrarei exatamente o que eu procuro, e vou saber exatamente quem eu sou.
Descreva um sonho marcante que você teve ultimamente.
Um sonho interessante: eu me encontro em uma praia – sei que é uma praia porque estou no alto de uma duna, descendo, escorregando. Venta e a areia amarela e fina se confunde com a maresia. Na descida, ainda no alto da duna, observo uma figura ao longe, sentada, tentando se proteger da tempestade de areia. Olho abaixo e observo outras duas figuras na beira da praia, que também se protegem do areal. Não consigo ver o mar, pois a tempestade e a maresia não permitem. Acordo. Meu coração me prega peças e dói. Sonhei isso em 2008.
Como você interpreta esse sonho?
Naquela época, eu pensava bastante sobre o que era a felicidade para mim. Tinha dúvidas sobre a felicidade estar ligada a bens materiais, ou ao equilíbrio intelectual, emocional, psicológico, profissional. Pensava em amores impossíveis. Estou ciente de que eu sou uma boa pessoa, mas por algum motivo, algum tipo de bloqueio mental, naqueles dias, eu não me permitia aceitar isso e seguir em frente. Aquele sonho me ajudou bastante no sentido de me deixar aflorar, a perceber que é preciso desapegar de tudo para poder viver bem. O desapego não é uma rejeição: é uma forma consciente de aproveitar cada momento, cada instante e cada situação com a mais profunda, sincera e explosiva intensidade. Ninguém pode se apegar ao tempo, porque seria inútil: o tempo nos devora, é essa sua função. Devemos viver os segundos e minutos intensamente, e aproveitar de maneira profunda as alegrias da vida. E também vivenciar as tristezas, porque sempre aprendemos com elas.
De que forma você sente a paixão em sua vida?
O que será, qual será o sentido da paixão? Ou os sentidos das paixões? As paixões terão que ter sentido, ou será que o sentido é a morte da paixão? Nunca há motivo nenhum para se apaixonar. O único motivo é você se sentir vivo. Viver uma paixão é algo bom, mas sentir-se e saber-se amado e correspondido, é que faz a conexão com a vida. Cartola diz numa música “nós somos dois perdidos”. A paixão só tem sentido nisso: na perda, na perda da razão, das estribeiras, nas atitudes loucas e impensadas, impulsivas. A paixão tem caminhos que desconhecem a razão. Por razão, eu não teria nascido. Nós não teríamos vivido. Não há do que se arrepender, nunca. Apenas deve-se consentir com o “destino”. Muito além do jardim, “a paixão é um universo em que razão não podes ter” (isto é um verso de um grande poeta, meu amigo). A vida em si só faz sentido quando você sonha mais, muito mais. Não se satisfazer com os sonhos loucos da noite é acreditar sempre mais no amor. A confusão faz parte da vida. Então, por que desejar outra coisa? “Se ela virar minha cabeça, eu viro a cabeça dela”. Elas por elas! O amor consiste em troca consentida de fluídos corporais. O melhor de tudo é você ouvir o riso de alguém por quem está apaixonado toda vez que fala com essa pessoa. Paixão é você fazer rir a quem você ama. E mais, amar ouvir o outro rir e sorrir. Amar sua mente: estou apaixonadamente.
Você acredita em “inspiração”?
Eu sou um escritor intuitivo. Sempre me pergunto “por onde começar a escrever, afinal?”. Não sou nenhum Dostoiévsky, estou consciente disso. Sou apenas um André qualquer, vagamundeando de déu em déu, sem destino e incerto da maioria das coisas, com pigarro e mil ideias vagas na cabeça, escolhendo destinos perdido numa rodoviária, imaginando que ao invés de Ponta Grossa, eu deveria estar em Linhares, ou em Córdoba, ou em Aracaju, ou em Nova Iorque... Escrever pra mim é uma forma de responder – ou tentar responder – à pergunta que me atormenta desde quando eu tinha seis anos: será que eu vou realmente, finalmente, romper as velhas estruturas que me cercam e explodir, me lançar como bólide rumo ao infinito? (É claro que eu não pensava com essas palavras, aos seis anos). No entanto, tenho que pagar as contas, e percebo o quanto isso é ridículo. Eu sou um cara que gosta de rabiscar cadernos em branco, apenas isso. Na verdade, ao invés de “inspiração”, penso que é sempre possível escolher fazer o que se faz, e eu sempre acredito que muitas coisas que eu deveria fazer, farei finalmente. Uma boa fonte de inspiração é o dinheiro.
O dinheiro não vilaniza a escrita?
Pela primeira vez em minha vida, em 2011, eu consegui ser pago por coisas que escrevi. Fiquei muito feliz, porque, não sou hipócrita, essa sociedade é capitalista e nós precisamos de dinheiro se quisermos ir à Índia meditar. Não acho que o dinheiro vulgarize ou vilanize nada. Quem vulgariza ou vilaniza é você. Se você usa o dinheiro da escrita para se divertir de forma vil e vulgar num puteiro, a escolha é sua. Se usa para comprar um livro, ou assistir um concerto de Mozart, você potencializa positivamente o uso do dinheiro. Eu gosto de ser pago, e não sou fã de dar de graça a única coisa que eu posso vender. E outra, meus heróis literatos são todos vilões: Burroughs, Bukowski, Lima Barreto, Caio Fernando, Allen Ginsberg, Genet... uns canalhas imorais, que viviam atrás de um dinheirinho. Eu sempre quis ser como eles - mais na escrita do que no estar sempre atrás do dinheirinho, que fique claro. 
Para encerrar, o que você pensa que pode se tornar sua vida daqui pra diante?
Assisti há uns tempos atrás o filme “A estrada”, de Fellini, com Giulietta Masina e Anthony Quinn. Que filme belíssimo! Uma metáfora da vida e das situações humanas, demasiado humanas. Eu havia visto o filme pela primeira vez há uns 5 anos, e pude revê-lo com mais serenidade, e pensar que várias vezes eu agi como Zamparò, e de certa forma, acabei como ele, no fim da estrada, quando já não restava mais nada a não ser uma praia deserta e a noite escura, as ondas do mar, as areias e as lágrimas. Quem não se sentiu assim, uma vez na vida? Mas eu aprendi, e hoje me sinto capaz de compreender isso e não me deixar abalar tanto pelas amarguras que surgem volta e meia no meu peito de aço... Eu gosto do palhaço, mas o pior palhaço é aquele que acaba palhaço de si mesmo - sem saber que era ele o verdadeiro palhaço. É impressionante a força que um filme possui e a quantidade de interpretações possíveis, e também o que o tempo e os novos contextos, as novas revelações, podem fazer com suas interpretações daquilo que há pouco parecia terrível, e de repente, se torna banal. "Meu passado é um rio maldito" (essa é do Burroughs), mas eu sou André, estou aqui, agora, hoje, e tenho uma vida nova, inteiramente nova, diante dos meus olhos. Num certo sentido, o nível de consciência  em que você se encontra  permite que você tome conta total de todos os seus atos. É para isso que eu estou trabalhando. Nunca estive tão tranqüilo, e espero que isso continue e eu possa conquistar coisas boas, para com elas, fazer coisas boas, também, para todos os que estão do meu lado. A solidão pode ser amarga, às vezes, mas não há nada melhor para que você consiga compreender a liberdade e a necessidade de sempre seguir em frente.  Acho que é isso. 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Caranguejos com cérebro: 15 anos sem Chico Science



Depois do terrível evento social de ontem, o velório do jornalista Victor Folquening, um prodígio da sua área, morto antes dos 40, de maneira estupidamente trágica num acidente de trânsito quase banal em Curitiba,  hoje as "redes sociais" me fazem recordar que faz 15 anos que morreu Francisco de Assis França, o Chico Science. 
Eu me lembro com tristeza daquela noite de 1997, véspera de Carnaval, em que eu estava trabalhando/ aventurando num bar da Lagoa da Conceição, no verão de Floripa e tendo a meu favor o elã dos 20 anos, quando logo no início da noitada, o DJ da casa chegou e disse: "avisa a galera que o Chico Science morreu". Minha reação foi parecida a de quase todo mundo da minha geração que se ligou naqueles caranguejos com cérebro, vindos do distante e até então mítico Recife, para a afirmar a força viva, jovem e criativa da música brasileira: espanto, surpresa e tristeza. Como assim, "Chico Science morreu"? Na véspera do Carnaval, ainda? No mínimo, uma piada de mau gosto...
Lembro-me de ter ficado extremamente triste, ainda mais porque, pouco tempo antes, Chico e a Nação Zumbi fizeram um show para alguns gatos-pingados no extinto aeroanta em Ponga Trossa e... eu não fui! Nunca me redimi completamente do fato, nem quando a Nação Zumbi, uns 10 anos depois, tocou novamente em PG, num show memorável - desta vez, eu estava presente, mas aquela falta nunca será completamente sanada. 
Nunca houve dúvidas de que Chico era o maior nome da música brasileira nos anos 1990. Sua música e suas ideias eram a resposta perfeita para quando meu pai desfazia em tom de piada das "gerações coca-cola", perguntando "quem é tão marcante agora, que possa se comparar aos Beatles, Pink Floyd, Roberto e Erasmo, Chico Buarque, Elis Regina, Raul Seixas? Tua geração é pobre musicalmente". O aparecimento de Chico Science e a Nação Zumbi veio para nos redimir e me dar a resposta adequada ao conflito de gerações, Foi legal ouvir meu pai admitir "- Sim, esse rapaz é bom". E ele também ficou realmente chateado com a morte do cantor.
O empobrecimento da MPB talvez no atual momento chegue ao seu extremo mais radical, com o lixo cultural que nos é imposto goela abaixo como óleo de rícino e vendido como "música" ou "fenômeno musical". Nem vou citar nomes, porque não quero macular meu texto com o baixo-espiritismo dos íncubos sem cérebro que  se apresentam como "músicos" e tomaram conta do ambiente musical brasileiro para chafurdar e submeter nossos ouvidos aos dejetos de sua mediocridade. 
Só sei que Chico Science faz muita falta, e cada vez mais, em especial quando penso que sua carreira meteórica, seus dois discos gravados, poderiam ter sido lançados semana passada. A força é igual. Chico e o movimento que ficou conhecido como Manguebeat influenciaram definitivamente a música, a poesia, a moda, o pensamento daqueles que, como eu, tinham 20 e poucos anos entre o fim do século passado e o início deste século de incertezas. Para mim, sempre foram uma referência, uma influência que para sempre vou carregar. Tenho muitas saudades. 
Uma vez, perguntado sobre o que mais amava em sua terra, ele respondeu: "A vista do Recife a partir de Olinda, e a vista de Olinda a partir do Recife". Ironicamente, ou talvez como um louro que os deuses somente oferecem para os verdadeiros iluminados, Chico Science morreu exatamente na ponte que une Recife a Olinda, quando se preparava para participar do pré-carnaval de Olinda. 15 anos se passaram desde então. Hoje, especialmente, ainda afetado pela morte de Victor Foquening, que também era uma referência e uma influência para minha geração, carrego a amarga sensação de que o tempo implacável e cruel está nos tornando em velhos e saudosistas, e não há nada que se possa fazer a respeito. Tento lutar contra isso, mas o duro é que nem mesmo podemos nos consolar com a genialidade musical de Chico Science, ou as ironias inteligentes e a visão aguda de Victor. 
Os deuses são irônicos e cruéis com os pobres humanos. 
Nos presenteiam com uma mão e retiram implacavelmente com a outra. 

Nossa vingança é a memória.



A CIDADE (Chico Science & Nação Zumbi)

O sol nasce e ilumina
As pedras evoluídas
Que cresceram com a força
De pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam
Vigiando as pessoas
Não importa se são ruins
Nem importa se são boas
E a cidade se apresenta
Centro das ambições
Para mendigos ou ricos
E outras armações
Coletivos, automóveis,
Motos e metrôs
Trabalhadores, patrões,
Policiais, camelôs
A cidade não para
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade não para
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade se encontra prostituída
Por aqueles que a usaram
Em busca de uma saída
Ilusora de pessoas
De outros lugares,
A cidade e sua fama
Vai além dos mares
E no meio da esperteza internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos
A cidade não para
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade não para
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
Eu vou fazer uma embolada,
Um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado
Bom pra mim e bom pra tu
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus
Num dia de sol Recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Gatos



Estou saindo de um prédio antigo, provavelmente meu antigo colégio de infância. Ando pela calçada à minha esquerda, e me deparo com uma bacia de plástico, grande, onde estão dispostos vários pedaços de carne, filés que nadam, aparentemente assados. Tem um aspecto repugnante, e eu não quero comê-los. Acho mesmo bastante estranho encontrar uma bacia com carne assada no meio da rua. Ando mais alguns passos, sempre pela mesma calçada, e deparo com um gato branco, felpudo, bem bonito, que brinca com alguma coisa junto a um poste. Observo que, apesar de ser um gato realmente bonito, é um filhote e tem olhos azuis, ele está muito magro, esquálido, aparenta estar com fome. Eu o pego e levo até a bacia de filés, e ele se delicia com um bom bife. Eu fico feliz por dar de comer ao bichano. Penso em levá-lo para casa, mas lembro que tenho um cão e desisto da ideia.