domingo, 16 de fevereiro de 2014

Fórum Mundial das Bicicletas: impressões

O cicloativismo se tornou um viral. Em inúmeras cidades brasileiras e mundiais, há uma evidente busca pela utilização cada vez maior das bikes. No caso brasileiro, entre as várias cidades médias e capitais, poucas ficaram de fora da onda biker -  que fomentou discussões, bicicletadas, e com a presença cada vez maior de ciclistas, fez com que muita gente se equipasse e começasse a aderir ao uso do transporte em duas rodas - principalmente para o lazer e - em casos menores - para a locomoção no dia a dia.
Ainda que seja muito encontrar gente sempre mais interessada em ciclioatividades, e outras tantas pessoas pedalando, quando se fala em ciclismo no Brasil, é preciso atentar para algumas características próprias da locomção em duas rodas enquanto expressão de setores da sociedade brasileira. Pra começar, podemos observar o surgimento de um grupo de ciclistas "neófitos", influenciados pelo marketing em torno onda biker global - em geral, este grupo é composto de pessoas com um perfil sócio-econômico mais elevado, que aderiram recentemente ao ciclismo e pedalam apenas em determinados momentos de lazer. Este grupo quase nunca faz uso da bicicleta na sua rotina de locomoção urbana, ainda que isso, obviamente, não desmereça o fato de encontrarmos em cidades onde o ciclismo sempre foi uma aberração ou uma excentricidade - como, por exemplo, Belo Horizonte (MG) ou Ponta Grossa (PR), cidades que conheço do ponto de vista da vivência do ciclista urbano - um renovado interesse pelo ciclismo. 
Este movimento tem inclusive ajudado a difundir a ideologia da biciclsta na cidade e contribuído para pressionar o poder público, em alguns casos, para que passe a contemplar em seus projetos e obras de infraestrutura a mobilidade urbana (escrevo isso com vontade de rir amarga e ironicamente, porque sei o quanto isso é difícil de ser efetivado nos planos diretores das cidades no Brasil), seja através de políticas que priorizem o transporte intermodal, ou da criação de ciclovias e ciclofaixas, ou ainda, implementando regras e leis para melhorar o convívio dos ciclistas com a cidade como um todo. De qualquer maneira, a presença de centenas ou milhares de ciclistas nas ruas de algumas das principais cidades brasileiras em pedaladas organizadas, traz visibilidade para a questão do ciclismo, e também tensiona e convoca outras pessoas a aderirem, ainda que em determinados momentos, à bicicleta.
Charlote Fagan, da ONG norte-americana"Bikes not Bombs": distribuindo bicicletas em áreas de conflito (muitas vezes criados pelas políticas de seu próprio governo).
A questão da visibilidade do ciclista urbano é crucial para o ciclismo: quem não é visto, é atropelado.

Por isso, quanto mais as bicicletas se tornarem parte da paisagem urbana, mais seremos lembrados como parte do trânsito e consequentemente, haverá um maior respeito à bicicleta ocupando seu espaço nas ruas, avenidas, compondo a paisagem urbana do nosso tempo.
A partir desse reconhecimento, tal questão pode suscitar reflexões mais profundas.
Nas grandes cidades brasileiras, temos uma categoria de ciclistas que não pertence aos extratos sócio-econômicos mais privilegiados: este grupo é composto essencialmente por trabalhadores, que há muito tempo perceberam a importância da bicicleta como fator de impacto econômico em sua vidas. Andar de bicicleta, para muita gente, não é uma alternativa - é a única forma de não ser obrigado a pagar pelo caro e ineficiente transporte coletivo, que come boa parte dos recursos e da saúde mental dos trabalhadores e seus demais usuários.
As cidades brasileiras não são amigas do ciclismo ou dos ciclistas. É desnecessário relembrar os braços arrancados e jogados em rios poluídos, os atropelamentos, as mortes, as fechadas, as facadas no coração - tantos exemplos da generalizada falta de educação dos motoristas e o clima de hostilidade em nossas ruas e vias expressas por parte dos motoristas para com aqueles que pedalam.
A integração desses "ciclistas invisíveis" é fundamental para a discussão a respeito de um ciclismo que ultrapasse o mero lazer ou modismo. E é urgente que as demandas, problemas e também as ideias desses "ciclistas invisíveis" sejam incorporados ao discurso e às reivindicações do cicloativismo brasileiro.
É evidente e incontestável que o III Fórum Mundial das Bicicletas, realizado em Curitiba, foi um evento importantíssimo, especialmente por agregar experiências de diversos matizes e de diversas partes do mundo, permitir a troca de ideias e o aprendizado ampliado a respeito das bikes, dos modos de pedalar, dos objetivos, da organização, das viagens, das mudanças sociais, culturais, educacionais e econômicas que a bicicleta pode oferecer, etc. etc. etc.
O Fórum foi feito praticamente na raça, sem patrocínios. Reuniu várias cabeças pensantes, pessoas que vieram de inúmeros países e regiões para relatar suas experiências e suas práticas a favor da inserção da bicicleta como uma alternativa limpa, correta, barata e prática no cotidiano urbano neste século 21. A bicicleta não é uma utopia - ela é uma das tecnologias mais poderosas e criativas já inventadas, e quando se aplica de maneira ampliada, como parte de um planejamento comum à uma comunidade, torna-se uma ferramenta crucial na melhoria da vida das pessoas, não importa em que parte do mundo elas vivam.
Pedalar, ademais, não tem nada de vanguarda: é um retorno ao passado sem carro, um mundo mais lento e mais silencioso, e talvez por isso mesmo, mais humano.
Fernando Rosembaum - proprietário da Bicicletaria Cultural, no centro de Curitiba
Entretanto, é preciso dizer que o Fórum não se abriu para a sociedade. O cidadão comum da capital do Paraná não percebeu e ficou indiferente à realização deste tão importante evento. As discussões ficaram restritas ao nicho de interessados e aficionados, ou dos envolvidos completamente no cicloativismo.
O "ciclista invisível" das grandes cidades - e que está aqui em Curitiba a pedalar das periferias para o seu trabalho diariamente, espremido entre o preconceito, o trânsito hostil e o riso dos idiotas - definitivamente não se fez presente no fórum, a não ser em algumas discussões mais pontuais, como a do guatemalteco Carlos Marroquin, indígena que vive em uma comunidade no interior da Guatemala e que foi responsável por implementar e por em prática diversas soluções relacionadas com a tecnologia da bicicleta, conseguindo, através disso, melhorar substancialmente a vida, a dinâmica, o cotidiano e a economia de seu pueblo centro-americano. A criação de "bici-moinhos", "bici-descascadores de sementes", "bici-moedores de café", "bici-bomba de água" faz significativa diferença em sua comunidade.
Acompanhei a intervenção da estadunidense Charlote Fagan. Ela é representante da ONG "Bikers not Bombs", e expôs a atuação de sua organização na "promoção da justiça social e solidariedade norte/sul" a partir da difusão da bicicleta. O trabalho da "Bikers not Bombs" é levar bicicletas para zonas de conflito ou bolsões de pobreza (como o Afeganistão, o Iraque e diversos países africanos) e ajudar comunidades afetadas pela guerra ou pela exclusão econômica a desenvolver sua economia e educação a partir da autonomia  através da ciclomobilidade. Ouvindo a fala da senhorita Fagan, entretanto, não pude deixar de refletir que sua ONG e outras organizações similares com origem nos Estados Unidos façam ações deste tipo em lugares onde o exército e a serviço secreto de seu país são desencadearores das crises que as ONG's pretendem mitigar. Fagan afirmou ter "sorte por trabalhar em uma organização que tenha dinheior". Também admimitiu, quando questionada por mim, que o Fórum não era para os "ciclistas invisíveis", mas para a "classe média". Apenas uma constatação do óbvio.

A bicicleta de bambu: vanguarda tecnológica ou retorno ao passado?
Em geral, o que observei na fala de Fagan permeaou por todo o Fórum: a ausência de uma discussão que deliberasse mais aprofundadamente sobre a dificuldade de se implantar o ciclismo no Brasil como meio de transporte público efetivo e disseminado. Todos sabemos que, por conta de nosso trânsito hostil e, sobretudo, da ausência ações educativas que estejam relacionadas com políticas públicas claras, especialmente nas cidades médias, não conseguimos avançar na revisão do transporte público e suas formas de financiamento. Por isso, ao invés de priorizar os interesses da maioria da população, preferimos garantir as concessões aos grandes grupos econômicos, deixando-os responsáveis pelo de transporte público e as grandes obras viárias nas cidades.

Em minha opinião, a principal demanda do cicloativismo brasileiro é justamente romper essa barreira cultural e educacional: de que modo fazer com que as cidades brasileiras passem a ser mais amigáveis ao ciclismo, e progressivamente levar mais gente a utilizar a bicicleta como meio de transporte? Sem fomentar a educação em conjunto com um programa de adesão gradual ao ciclismo, implantado através de políticas públicas claras e efetivas, isso continuará impossível.
Mesmo com o frio e da chuva curitibanos, muitas bicis no bicicletário do Museu Oscar Niemeyer.
Apesar dessas constatações, é muito importante reconhecer como algumas ações tem sido exemplares no fomento ao ciclismo em Curitiba. Um exemplo é a Bicicletaria Cultural, que promove o cicloativismo, dá cursos sobre mecânica, oferece pequenos serviços, orienta pessoas que querem começar seu negócio com ciclismo e ainda oferecem estacionamentos para bikes, em lugar estratégico no centro da capital. 
Bicicleta como moinho: invenção do guatemalteca Carlos Marroquin
Vivenciar o ciclismo durante esses dias chuvosos, fazendo as ressalvas, foi bastante importante. Do ponto de vista pessoal, me inspirou a continuar a pedalar e a militar por uma sociedade mais aberta ao ciclismo - pois todos temos a ganhar com isso, em termos de saúde, economia, logística, visão de mundo, amor, paz e tudo o mais de bom que as bicis proporcionam.
Também fiquei com uma vontade tremenda de viajar de bike, como fizeram os ciclistas Danilo Perotti Machado, que conheceu 59 países em 3 anos sob sua bike, e Antonio Olinto, que é um inspirador e um cara que viajou pelo mundo também somente em duas rodas. 
Quem sabe não chegou finalmente minha vez?
A lição que tirei do Fórum é que a humanidade vai acabar se aproximando mais e mais das bicicletas - talvez pela própria iminente necessidade de se reoganizar e se reinventar como espécie - como seu principal meio de transporte. Talvez isso não demore nem 50 anos pra acontecer,quem sabe ocorra antes do que possamos imaginar. Se você não pedala, é sempre a hora de começar. 





Por toda parte, as dobráveis tomavam conta do espaço.

Antonio Olinto: fomentando o cicloturismo a partir de sua experiência como ciclista global.

Danilo Machado: 59 países, uma bicicleta, 3 anos, 3 meses e 3 dias. 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Exercício e tradução: Lord Byron

Fiz um pequeno exercício de tradução. O trecho escolhido foi a primeira estrofe do Canto III, LXXXVI, do poema Don Juan, escrito pelo poeta romântico inglês Lord Byron (1788-1824). Sem maior pretensão que não um relaxamento entre uma e outra leitura mais séria.
Segue abaixo.

Lord Byron; Excerto do poema “Don Juan”, Canto III, LXXXVI.

The Isles of Greece, the Isles of Greece!
The Isles of Greece, the Isles of Greece!
Where burning Sapho loved and sung,
Where grew the arts of war and peace,
Where Delos rose, and Phoebus sprung!
Eternal summer gilds them yet,
But all, except their sun, is set!

Tradução
As ilhas da Grécia, as ilhas da Grécia!
Onde a ardente Safo amou e cantou,
Onde nasceram as artes da Guerra e da Paz,[1]
Onde Delos floresceu, e Phoebus brotou![2] [3] [4]
Por um eterno verão ainda dourados,
Tudo, menos seu sol, está engastado![5]
                                                                                                                




[1] A tradução literal excluiria a expressão preposicionada “da” como indicativo do substantivo “Paz” (“the arts of war and peace”). Trata-se de uma tentativa de aproximação do ritmo e da métricas originais, que  exercem função crucial para a coesão e para a fruição do poema.

[2] Aqui, optei por manter a forma clássica, também por questões de ritmo e tonalidade: “Phoebus”, no original, é aproximadamente como “fibus” (perdoem a transcrição fonética pobre).

[3] Delos: pequena ilha no centro do mar Egeu, consagrada ao deus Apolo (ou Febo), considerada pela mitologia seu local de nascimento, bem como de sua irmã, Artemis (Diana).

[4] Phoebus, Febo (forma grega: Ἀπόλλων): deus Greco-romano da música, da luz e da beleza.

[5] A opção por traduzir “set” como “engastar” deu-se pelas inúmeras possibilidades contextuais de uso do verbo em inglês. Entre outras, figuram significados distintos como: estabelecer, fixar, por (por do sol) mas também designar, marcar e demarcar, exemplificar, indicar, solidificar, endurecer,  montar e engastar (embutido, incrustado, intercalado). Entenda-se no verso que “o sol (que ilumina Delos e é o próprio Apolo) está engastado no arrebol.  A vantagem é manter a rima em português.