quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Lições que aprendi em 2011, ou confissões de um ser em transformação


Nunca fui muito de me emocionar com os apelos sentimentais do fim de ano.
Pra falar a verdade, acho bastante forçado o clima natalino, que de repente, parece tomar conta das pessoas e fazer com que vizinhos que nunca se falam, parentes que jamais se visitam, colegas que não se suportam, passem a desaguar de forma melosa e quase histérica os "votos" de "fraternidade", "paz", etc etc etc.
Na verdade, para mim vale muito mais você dizer o que sente pelas pessoas com quem convive no dia a dia, e com ações, com práticas, com atitudes que demonstrem em que realmente acredita. Deixar para o fim do ano, pode ser tarde demais. Ou parecer hipócrita e superficial.
Hoje é a data em que um de meus mais queridos amigos, meu padrinho e mentor, faria 65 anos. Ele se foi há três e eu sinto sua falta todo dia, especialmente quando caminho pelas ruas da cidade ao por do sol, pensando em quanto eu gostaria de dividir dos meus sonhos e projetos, e no quanto eu gostaria de ouvir seus conselhos novamente, nem que fosse por uma única vez.
Mas isso é impossível, e eu tenho que me conformar.
O ano passou rápido, e em alguns momentos, eu me senti bastante confuso com minha vida e os acontecimentos em torno dela. Entretanto, 2011 foi para mim bastante intenso. Em janeiro, eu ainda morava em Belo Horizonte, e tinha ainda pouco mais de 6 meses de contrato, e estava realmente na expectativa do que viria a acontecer. O tempo passou, meu contrato acabou e eu tive que decidir o que faria. Acabei voltando para meu bunker em Ponta Grossa, onde me encontro. Confesso que retornar à casa dos pais aos 35 anos de idade, a princípio, me pareceu uma derrota. Não pela família, com quem me sinto plenamente integrado e à vontade, mas especialmente porque eu realmente não esperava ter de voltar pra cá tão cedo. Eu me sinto muito bem quando estou em Belo Horizonte, gosto muito de Minas Gerais e tinha a expectativa de passar mais alguns anos por lá. E de repente, eu cheguei de volta justamente no início do mais frio inverno dos últimos dez anos. Foi realmente difícil. Pra piorar, estava sem grana, e ainda tive decepções  profundas com velhos amigos, a quem eu muito estimava - e ainda estimo, pra dizer a verdade-, mas que me deixaram realmente pensativo sobre o que minha postura, meus pensamentos, minhas ideias poderiam significar de verdade para as pessoas a quem eu sempre considerei meus fiéis parceiros e apoiadores. 
De repente, por conta desse retorno conturbado, o que eu fazia ou pensava parecia não ter o menor sentido, nem para mim nem para as pessoas que eu esperava que compreendessem o sentido das coisas. Tudo isso, sem dúvidas me deixou bastante inseguro. Minha reação foi aceitar, uma vez mais, as cismas do destino, e tentar manter a racionalidade, e tentar enviar, na medida do possível, boas vibrações às pessoas. 
Relaxei. Lembrei que a vida é um sonho, por vezes um mar revolto e aparentemente turvo, mas que logo depois se torna algo límpido, azul-turquesa e cheio de corais coloridos. 
O exercício da compaixão, aliado a uma firmeza em relação ao que eu realmente acredito, seja como escritor, educador, ciclista, músico, agitador cultural ou como um simples ser humano, nem melhor nem pior do que qualquer outro, com suas virtudes e defeitos, foi o que me manteve equilibrado. Logicamente, contei com o apoio de pai, mãe, irmã, irmãos, sobrinhos, além de amigos que se mantiveram próximos, além de novas amizades que se tornaram caras e essenciais, e também o apoio fundamental de minha querida namorada que me aguenta e que não desistiu de mim - e ela teve várias oportunidades e mesmo motivos para fazê-lo, mas eu agradeço de coração por ela não tê-lo feito. 
O fato é que o ano passou, e eu me vi repentinamente inacreditavelmente tranquilo. Talvez mais sereno do que eu já estive em todas as minhas quase 36 primaveras - a caminho das 96.
O distanciamento de antigas relações acabou se revelando algo bom, porque me obrigou a uma reflexão profunda, em que eu pude compreender que também cometi erros e posso até mesmo ter ofendido e magoado pessoas sem sabê-lo ou sem a intenção disso. Também me provocou uma experiência inédita: a sensação de, ainda que me sentindo um tanto injustiçado, saber manter o equilíbrio para evitar traumas maiores e coisas de que eu pudesse me arrepender no futuro. E ainda por cima, me trouxe a possibilidade real de avaliar aquilo que eu espero de amizades, e aquilo que meus amigos podem esperar de mim. Pra finalizar, toda essa turbulência abriu-me a perspectiva de renovação de contatos, ideias, pensamentos, e sentimentos, e isso foi também um ponto muito positivo.
No mês de agosto, comecei a fazer algo que eu realmente gosto: dar aulas para adolescentes. Trabalhei num cursinho pré-vestibular, numa escola confessional, e acho que desempenhei bem meu trabalho. Os meninos e meninas renovaram minhas energias. Eu abandonei meus preconceitos sobre colégios confessionais. Mas só pude realizar esse trabalho porque, de repente, também, percebi que há pessoas que confiam em mim, e eu sou grato a elas pela oportunidade de corresponder a esta confiança.
Também por conta de pessoas que conhecem meu trabalho e minha ideologia como educador, tive a oportunidade de publicar quatro trabalhos para uma editora de renome nacional, algo que me deixou bastante feliz, porque pela primeira vez, tive certeza de que meus pensamentos e minhas posições a respeito da educação humana, contemporânea e pró-alunos puderam ressoar de forma incisiva pela blogosfera a fora. E ainda no segundo semestre, depois da minha volta à terra natal, participei de um filme premiado, toquei pandeiro num show em homenagem a Pixinguinha e Benedito Lacerda - outra vez, através da confiança em mim depositada por amigos, músicos de altíssimo gabarito e sensibilidade, que me permitiram participar de um momento realmente brilhante ao seu lado, ao qual eu só fiz parte por estar em PG.
E, como se não bastasse, ganhei de presente de Natal de um casal de amigos fiéis uma bicicleta!
Depois de tudo isso, olhando para trás, reflito que a ansiedade que tomava conta de meus pensamentos, ao final do primeiro semestre deste ano de altíssimas emoções, se dissipou, e acabou se tornando uma grande expectativa sobre o que vou fazer, quais serão meus projetos, quais ideias vou por em prática nos próximos meses.
As lições que eu tiro disso, e que vou procurar tornar minha regra geral de comportamento em 2012: humildade, jamais ser arrogante, ser generoso, fiel, acreditar em si mesmo, sem jamais duvidar dos outros, e sobretudo, agradecer pela vida nos ensinar que nunca nada está perdido, e mesmo aquilo que parece ruim, pode no final proporcionar coisas boas.
Espero conseguir praticar a fraternidade, a generosidade, a sobriedade, a compaixão na maior parte do tempo, em 2012. 
E espero que este blog continue a ser, junto de bicicletas, canções, fotografias, ideias e música, um instrumento para que isso se concretize.
Feliz ano novo a todos os que acompanham meus Caldos de Cana!

domingo, 4 de dezembro de 2011

SÓCRATES BRASILEIRO

A morte de alguém como Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, ídolo de gerações, dono de um estilo único, genial, que sabia ser alegre e cerebral ao mesmo tempo, é sempre comovente.
Um dia triste para o povo brasileiro. Perdemos em referência o que o Doutor nos oferecia pelo exemplo de sua cultura, seu pensamento, sua auto-crítica. Fatalidades ocorrem, mas não deixa de ser irônico perder Sócrates no justo momento em que a luta contra a burrice talvez devesse representar nossa maior batalha.
O Panteão do Futebol Brasileiro recebe outro Herói: onde já figuram Domingos da Ghia, Leônidas, Garrincha, vem completar a cena a imagem do Doutor Sócrates.

sábado, 19 de novembro de 2011

Gotas poéticas de Minas Gerais

Falar da obra de um amigo é sempre um risco. Vou parecer partidário, e minha amizade vai ser tomada ao pé da letra como atitude parcial ao defender uma obra que, talvez para olhares mais críticos e distanciados, seria considerada com menos brandura. 
Porém, assumo o risco e afirmo o seguinte: Milton Fernandes é um grande poeta. 
Produzir, coletar, publicar e assumir a própria poesia, nestes anos de mares revoltos, em que obras autorais são consideradas peças de museu, é sobretudo, atitude corajosa - mais ainda num país como o nosso, que não obstante os avanços econômicos e estruturais dos últimos anos, ainda é um país de analfabetos funcionais, de pessoas superficiais e alienadas, a quem o último dos interesses estaria ligado a um livro de poesias.
Mas o que dizer das "Gotas" de Milton Fernandes, senão que nos impressionam pela leveza, pela sutileza, pelo caráter e pelas opções poéticas e estéticas, explícitas desde a capa - também trabalho autoral de Milton, esse malandro que além de poeta é também designer, músico, fotógrafo e projetista gráfico de destaque no mercado editorial independente de Minas Gerais (se você acha pouco, procure saber mais sobre o mercado editorial mineiro e compreenderá a importância de trabalhar com livros em Minas)?
Além de tudo, é difícil, realmente, separar o designer, fotógrafo e projetista, do menino que é pai do menino Theo, livre e brilhante desde o berço, e do menino-marido da bela Tassiani, ela também uma esteta da linguagem, uma amante do belo e, fundamentalmente, minha confidente nos últimos 15 anos - além disso, junto com Milton, foram e são meus protetores nas terras de um Belo Horizonte. Como podem perceber, este é o relato passional de um amigo leal. E nada mais prezado por mim do que a lealdade. 

Mas vamos à poesia: o que Milton Fernandes pretende demonstrar desde a apresentação gráfica do livro é a tentativa de fundir uma ideia central com as partes que a compõem, numa unidade entre estrofes cujo conjunto aponta para uma significação comum, porém ponteada por significações in(ter)dependentes em cada estrofe. Na poesia de Gotas observa-se, tal qual uma chuva, a concatenação significativa de uma unidade diluída no conjunto: assim, a totalidade da chuva-poesia nos diz algo, que observado individualmente em cada gota-estrofe, subdividida entre estrofes, versos e palavras, adquire forma significativa tão forte quanto o conteúdo universal do poema. 

De maneira aleatória, escolhemos o poema "amor? amor!" (pág. 36):

amor? amor!
que medida? pare.
mande buscar 
sua camisa 
suada de sangue

da batalha
pelo último pote
do amor que lhe resta;

mas não se esqueça,
sinta de verdade

mesmo que haja dúvida
um dia
seu pulso 
lhe confirmará

Aqui, reside a ideia da medição do amor, pautada pelo paradoxo em que a dúvida se expressa na certeza,  ambas firmadas entre pacto sanguíneo de amantes que desejam a confirmação do que o pulso já dá como verdadeiro desde o início: a certeza do amor é marcada pelas incertezas do sangue escorrido, das batalhas, da sede pela última gota do pote. E essas batalhas, sede e última gota são os sinais mais certos de que há amor. A ideia do poema se expressa de forma clara em sua totalidade unitária.
Entretanto, observem cada estrofe separadamente, e teremos não um, mas quatro poemas curtos, cuja intensidade não se quebra, mas se aprofunda com a separação do todo:

         I                                           II                                    III                                  IV
amor? amor!                           da batalha                        mas não se esqueça     mesmo que haja dúvida
que medida? pare.                   pelo último pote              sinta de verdade           um dia seu pulso
mande buscar                          do amor que lhe resta                                         lhe confirmará
sua camisa
suada de sangue.

Cada uma destas estrofes deixaria Leminski orgulhoso com o poder fractal da poïesis .
E assim, com todas as outras. 
E assim, cada poesia, com o livro inteiro!
Não sei se isso é uma inovação, ou se a sutileza sagaz do poeta mineiro - nascido em Sete Lagoas, porta de entrada do sertão, o que pode explicar muito desta visão universal-fractal presentes em seu fazer poético - torna sua escrita atrativa. Pra dizer a verdade, nem sei se realmente ainda há espaço ou motivo, em nosso tempo, para sutilizas e genialidades individuais. Acredito mais na força subjetiva e inconsciente que une a humanidade, e pode provocar em indivíduos separados por culturas, línguas, religiões, etnias e espaços distintos e em situações distintas, a mesma força criativa,  materializada em objetos significativamente muito próximos.
O que sei é que a poesia em "Gotas" nos toca, e nos faz acreditar na corrente que une em uma singeleza poética almas de vários cantos. Este fazer poético sobrevive, indiferente aos apelos mercadológicos ou à diluição cultural que pretende tornar toda a humanidade em massa insossa e com pouco a revelar, ou a propor, subjetivamente. 
Obrigado aos poetas, que ainda nos fazem ter uma gota de esperança no peso que um verso pode ter como antídoto para esse mundo insano.

Em tempo: se você quer ler o livro, escreva para o Milton: www.miltonfernandes.com, ou adicione sua página no fêicebúq: http://www.facebook.com/profile.php?id=100000659754693.
Vale lembrar também que o livro "Gotas" será lançado oficialmente hoje, na livraria Café com Letras, em Belo Horizonte, com direito a sessão de autógrafos do autor. Se você está em BH, dá um pulo aí. Maiores informações: http://www.cafecomletras.com.br/lancamento_livro_05

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Choperia do Tito: finalmente, um filme trata da história de uma das mais tradicionais choperias do Brasil

Até que enfim, um filme sobre a Choperia do Tito!
Graças à Misto Quente Produções, foi produzido o primeiro documentário sobre a mais tradicional choperia do Paraná, que figura entre as mais tradicionais do Brasil: "Alma embriagada" mostra em 20 minutos o cotidiano de um dos mais emblemáticos estabelecimentos do país. A diferença entre o Tito e suas co-irmãs Pinguim, em Ribeirão Preto, Johan Sehn, em São Paulo, ou o Amarelinho, no Rio de Janeiro, é que essas últimas, ainda que permaneçam como tradicionais pontos de encontro e sirvam excelentes chopes, não preservam o que faz do Tito um lugar único: em Ponta Grossa, o chope ainda é servido tradicionalmente, a partir de seu armazenamento numa chopeira de 50 anos, sem uso da eletricidade, com duas serpentinas de cobre com 30 metros de comprimento.
A história da choperia se confunde com a de seu proprietário, Tufi Cury - conhecido como Tito. Aos 85 anos de idade, ele foi funcionário do Bar da Deliciosa, fundado na década de 1930. Entrou na choperia em 1942, e se tornou seu proprietário alguns anos mais tarde. A choperia mudou de endereço uma única vez, em 1956, mas trouxe do antigo ponto a máquina de chope, as mesas, cadeiras, prateleiras, espelhos, copos, cortador de frios e o caixa, que continuam preservados.
Hoje, a choperia pertence aos netos de Tufi Cury, os irmãos Anderson e Hudson Wiecheteck, que na década de 2000 abandonaram sua vida em Manaus para assumir a gerência da choperia, e assim, salvaguardá-la do que poderia significar seu fim. Não foram poucas as tentativas de desalojar o Tito de seu lugar tradicional, por conta da vampiresca especulação imobiliária que já destruiu 90% da memória da cidade. A última contenda teve que ser resolvida na justiça, que garantiu a permanência do bar no seu local tradicional. Além de terem assumido o local, a presença dos irmãos trouxe ânimo ao Tito, que de segunda a sexta-feira está ali, a partir do meio-dia até às 16 horas, servindo chopes e contando suas boas histórias com a simpatia e sua fina ironia de sempre.
A produção de "Alma embriagada" é fundamental para o processo de reconhecimento local e nacional deste bar, que se confunde com a cultura pontagrossense, e também com a história dos bares brasileiros no século 20. Não tenho dúvidas de que "Alma embriagada" será de grande importância para o que sempre considerei fundamental: o tombamento da Choperia do Tito como patrimônio histórico, material e cultural do Brasil.
Faço um convite a todos que ainda não conhecem, que venham a PG beber o melhor chope do Brasil. Alguma dúvida? Assistam "Alma embriagada" e vejam por si mesmos.
parte 1:

Parte 2:

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Professor: profissional da educação ou abnegado?

a questão é: paga-se mal e exige-se dos professores uma postura monástica. a ideia do "dom" para a educar tem origem exatamente no fato de que a educação ocidental, de uma forma ou outra, sempre recebeu influência religiosa. entretanto, para mim isso apenas justifica a hipocrisia daqueles que exigem dos mestres pura abnegação, acima de tudo, a ponto de a sociedade ficar surpresa quando lembramos a todos que os professores somos profissionais da educação
sem menosprezo pelo conceito, porém jamais realizei meu trabalho de maneira apenas abnegada ou altruísta: mais do que isso, sempre me vi como profissional, responsável por um dos serviços essenciais a qualquer sociedade organizada, e procuro ser valorizado por isso. é bem simples, até.
é claro que não entendo a docência como atividade "superior", nem mais nem menos essencial que nenhuma outra atividade exercida por outras classes profissionais admitidas em nossa sociedade - inclusive a classe discente. isso tampouco significa que eu esteja depreciando a emoção, a sensibilidade, a visão subjetiva e artística, parte do que considero o diferencial da profissão de educador: o contato humano, a troca, o aprendizado e a dedicação constantes que a profissão exige. 
portanto, penso que se a sociedade realmente crê necessitar de boas escolas, bons alunos e bons professores, pois compreende que educação de qualidade significa desenvolver-se e evoluir econômico-cultural-social-artístico-musical&ecologicamente enquanto sociedade, então, é justo que valorize o trabalho dos seus profissionais educadores e as condições da educação que quer para si mesma.
infelizmente, observamos muitas instituições educacionais, sejam públicas ou privadas, laicas ou confessionais, ora tornadas reféns de uma visão equivocada, anacrônica, burocratizante, baseada na auto-punição e na delação, que cerceia os espaços, deprecia e distorce todo pensamento, modelo, proposta, leitura ou comportamento em contrário. não se discute educação nas escolas. não se permite às escolas a diversidade. 
há a imposição de modelos e esquemas prontos e canônicos, contra os quais o questionamento é visto como heresia. acontece, senhoras e senhores, que hoje é dia 17 de outubro de 2011. estamos no século 21. tais conceitos foram - ou deveriam ter sido - há muito superados. 
é preciso deixar de vez a idade das trevas da educação. é preciso pensar em projetos que permitam à sociedade uma educação de possibilidades, baseada em conceitos como: educomunicação, equações de primeiro e segundo graus, ensino da literatura e da linguagem, das línguas portuguesas, brasileiras, africanas&estrangeiras, os binômios ler-escrever, interpretar-produzir, arte-música, pedagogia-esporte, filosofia-cinema, história-arqueologia, arquitetura-urbanismo, mobilidade urbana-transporte, física-astronomia, gêneros-sexualidades, sexismo-violência, tolerância-intolerância, censura&opressão, e o que mais couber aqui. 
a ausência de debate, por sua vez, faz parecer natural que haja câmeras nas salas de aula, policiais no câmpus, detectores de metais, salários baixos, bibliotecas desorganizadas e de acesso restrito e direcionado, fragmentação do conhecimento, hierarquização autocrática, desentendimentos entre pais, alunos e mestres, difusão de preconceitos e desdéns, uniformização, padronização et coetera, et coetera, et coetera. 
a apatia é o que nos leva a achar tudo isso normal. 
é lógico que a grana é muito importante. é o primeiro passo para um profissional se sentir valorizado na sociedade capitalista em que vivemos. mas não faz sentido trabalhar e lutar só por grana. nós precisamos urgentemente de um pacto social em nome da melhoria e democratização de fato dos nossos índices educacionais. deve ser responsabilidade da sociedade proporcionar melhores condições de educação aos seus membros e melhores condições de trabalho aos seus professores. mas isso só pode começar a partir da tomada de consciência de cada um de seus membros, que individualmente deve se sentir responsável pelo processo educativo. inclusive os professores: precisamos ser mais críticos, menos passivos, mais corajosos do que temos demonstrado ser. inclusive para deixar o corner e não sermos mais acuados por falsas promessas, descaso, desinteresse, desmandos. é preciso também que a sociedade sinta vergonha pelo modo como trata sua própria educação.
as mudanças são coletivas, mas dependem de transformações individuais. nossa postura enquanto sociedade que deseja educar e se fazer educar, de forma autossuficiente, autônoma, independente, crítica, que anseia por se consolidar como protagonista da evolução da humanidade, em nosso século e nos séculos vindouros, é o que deve nortear nosso desejo de educação. 
isso aconteceu com outros povos, ao longo da história. por que não poderia acontecer conosco?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A humanidade perde um de seus maiores gênios









"Você não conseguirá ligar os pontos olhando para frente; só poderá fazê-lo olhando para trás. Então, você deve crer que de alguma forma, os pontos vão se conectar em seu futuro."

Steve Jobs 
1955-2011

domingo, 2 de outubro de 2011

Memórias do Recôncavo Baiano: O gabinete de Doutor Caligari e a oficina do Zé Sapo



Em São Félix, cidade vizinha a Cachoeira, separadas e unidas pelo rio Paraguassu, em uma noite de verão, depois de passear aleatoriamente pelas vielas coloniais, fumando charutos, deparei-me no alto da ladeira Quebra-Canela. Do alto da rua, é possível avistar ambas as cidades, o rio que corre lentamente e a ponte de ferro, construída a mando de Dom Pedro II, que segundo a lenda, teria trazido o material diretamente do Canal de Suez. Conheci dois irmãos músicos, e ficamos um tempo cantando canções, acompanhados por cordas de aço, enquanto lua crescente se punha, e deixava a noite cheia de estrelas.
Realmente, uma daquelas cenas poéticas, inesquecíveis, da vida. Algo que na Bahia é ainda é possível acontecer, sem a influência da máfia do axé.
Eu havia decidido, naquele momento, deixar minha câmera no hotel: em viagens, eu sempre tiro muitas fotos, mas eventualmente, dedico um ou dois dias para sair a toa, sem o equipamento. Mesmo que isso signifique a perda daquilo que teriam sido fotos marcantes. É uma maneira de treinar o olhar através da observação dos detalhes. Ver e refletir ajuda a perceber o que fotografar, e é uma maneira de não se tornar obcecado pelo equipamento.
Obviamente, as imagens que ilustram esta postagem não se referem ao seu conteúdo.
Por estar sem a câmera, eu decidi que iria prestar o máximo de atenção a tudo o que acontecesse naquele passeio. Meu desejo era registrar fotograficamente na minha mente cada detalhe e sutileza de que eu fosse testemunha.
Desci a ladeira, e quando estava no meio da ponte, outra cena me chamou atenção. Vários pescadores aproveitavam a vazante da maré, e jogavam uns bons 20 metros de linha de nylon, devidamente presa a um novelo. O método de segurar a linha usado pelos pescadores se assemelha ao modo como garotos soltam pipas: a linha enrolada em um carretel, vai ao sabor da força do rio, e o pescador só tinha o trabalho de controlar, dando ou recolhendo linha, quando sentia que algum peixe fisgava a isca.
A pesca na ponte rendia tainhas, robalos, acarás, tucunarés, entre outros peixes, não muito grandes. Fiquei ali observando os pescadores por uns bons 30 minutos. Depois, fui até a pracinha, onde encontrei duas hóspedes da pensão em que eu estava hospedado, e elas me apresentaram a grande figura de Cláudio, conhecido como “Curto”. Um rapaz de 26 anos, que trabalhava como restaurador, mas se encontrava desempregado. Era realmente o cara por quem eu estive buscando desde minha chegada ao Recôncavo: através dele, consegui cadeado e bicicleta, e foi ele quem guiou a mim, Susan e Marcelo até a represa da Pedra do Cavalo, para tomar um delicioso banho de rio no dia seguinte.
Para chegar à barragem, atravessamos as duas cidades sob um sol escaldante, entre casebres coloridos, varais multicoloridos, pessoas que iam, vinham, crianças que brincavam, entre uma profusão de cheiros e sons.
Na volta, justamente a minha bicicleta sofreu uma pequena avaria: o parafuso que prendia o guidão simplesmente espanou, na metade do caminho. A busca por um conserto me proporcionou a vivência de algumas situações peculiares e particularmente inusitadas. Pra começar, é preciso dizer que o caminho foi feito pela rua Manoel Vitorino. Os casebres coloridos adornavam os dois lados da rua de paralelepípedos, que contorna um morro. Varais coloridos entre pessoas sorridentes, comadres que fofocavam, a maioria das população afrodescendente, me davam a cada segundo a sensação fantástica do Brasil em sua essência.

Avistei, numa garagem, uma máquina de caldo de cana. Parei e perguntei ao senhor gordo e bonachão, um amabilíssimo avô de olhos verdes e ternura, se poderia me ajudar. Ele levantou-se, foi ao fundo de sua casa, enorme como sua própria alma, grande o suficiente para caberem nela todos os seus filhos, filhas, genros, noras e netos. Enquanto isso, eu me deliciava com o mais doce caldo de cana de toda minha vida. Ele voltou com uma caixa de ferramentas feita de couro. As crianças se divertiam comigo, riam da cara do “estrangeiro”. Após ele apertar meu parafuso, eu agradeci, paguei pelo caldo de cana, e segui adiante, somente para constatar, duas quadras depois, que o parafuso estava frouxo novamente...
Segui empurrando a bicicleta. Acabei entrando num armazém, comandado por um velho carrancudo. O armazém era uma réplica em cores do próprio Gabinete do Doutor Caligari, com o próprio Caligari sentado ao fundo, cercado de prateleiras rústicas de madeira, com vários tamanhos e encaixes, um boteco obscuro que vendia farinha, grãos, sementes, cachaça, sabão, carne seca e outros produtos de secos e molhados. Seria perfeito cenário para um filme expressionista. No armazém, enquanto esperava pelo filho de Caligari buscar ferramentas, eu notei um bebedouro de beija-flores, bem no centro do barracão. De repente, vários pássaros entraram fazendo barulho, e bebiam água, enchendo o lugar de cor e perfume – um contraste gritante que trouxe beleza e iluminou o obscuro ambiente rústico, comandado por um velho homem de expressão dura. O único instante em que o vi esboçar um sorriso foi justamente quando dois beija-flores começaram a disputar espaço no bebedouro. “Elas sempre brigam por causa da água, essa ali é a mais tinhosa”, foi o que ele disse, referindo-se aos pássaros no feminino, para imediatamente voltar para sua posição enfurnada e carrancuda na poltrona, onde devia estar sentado há 300 anos.
Seu filho retornou e me emprestou uma chave inglesa (pequena demais) e um alicate (que não funcionou). Ao virar para a porta de saída, me deparei com outra cena de pássaros: na loja de Caligari havia três gaiolas, com pássaros presos que davam a sensação absolutamente oposta à dos beija-flores: tristeza, agouro, olhos esbugalhados. Olhei uma vez mais para o velho e segui meu caminho.


Informado por algumas pessoas, descobri finalmente, debaixo da ponte de ferro, a oficina de Zé Sapo. Uma oficina de bicicletas! No fundo da loja, Zé Sapo arrumava uma roda e não percebeu minha chegada. Falei alto:
- Boa tarde!
Ele me olhou.
- Estou com um pequeno problema. O senhor pode me ajudar?
Ele se aproximou, viu o tipo de parafuso, voltou para o fundo da oficina, abriu uma gaveta numa mesa, e me deu uma chave.
- Aperte aí.
Eu apertei.
- Está espanado.
Ele ordenou:
- Tira isso aí.
Obediente, fiz o que me disse, enquanto ele voltava para o fundo da sua pequena e caótica oficina. Remexeu em várias sacolas e pacotes plásticos, até que por fim encontrou um pacote de parafusos novos. Abriu-o grosseiramente, tirou um, jogou o pacote no fundo da gaveta, voltou em minha direção, colocou o parafuso no guidão, girou a porca e a arruela, opostas à cabeça do parafuso, deu-me outra chave e ordenou:
- Aperte!
Obediente, eu o fiz. Deixei bem firme, e lhe disse.
- Acabei. Quanto lhe devo?
- 70 centavos.
Tirei do bolso 75 centavos, entreguei a ele e agradeci.
- Obrigado a você. Fique com Deus.
E eu pude continuar meu passeio, agora, em busca de meus amigos que haviam se afastado. Como não os encontrasse, resolvi seguir minha intuição e fui em frente, por outro caminho, exatamente oposto ao caminho da tarde. A rua era mais estreita ainda, e ladeada pelo trilho do trem. Passar em meio a todas aquela gente, vivendo uma vida comunitária, em pequenos casebres, e observar como na boca da noite elas ficavam em frente a suas casas, adornadas por cadeiras e redes, onde homens e mulheres, jovens, velhos e crianças, cachorros, gatos e cavalos, se misturavam numa profusão absurda de imagens, cheiros e situações, me traziam a sincera sensação de uma alucinação onírica intensa. E as pessoas me observavam, também curiosas: eu, de boné, sem camisa, suando, pedalando, arfando, um verdadeiro intruso àquele mundo, sem parar de pedalar, até o alto da rua. Lá no alto, sentado em frente à sua porta, um velho negro, cego de uma das vistas. Eu o cumprimentei e fiz menção de que retornaria beirando o trilho, e então ele me disse;
- Não será perigoso?
Diante do espanto daquela declaração, eu perguntei:
- O senhor acha?
- Ah, eu acho que pode ser, né? E se vier o trem, fica pouco espaço pra gente.
- Então, vou seguir seu conselho e voltar por onde vim.
No retorno, com mais velocidade, o vento abafado na cara, eu me senti realmente nas entranhas do Brasil, no mais profundo e ignoto universo tropical.
Uma cena tirada de um livro de Joseph Conrad. E eu era o protagonista.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A educação e a falta de educação

Em Minas Gerais, a greve dos professores já dura quase três meses. 
Para além da controvérsia, vale lembrar que, do jeito que as coisas vão há anos no Brasil, qualquer greve de professores é a manifestação justa contra o descaso da sociedade e dos nossos administradores públicos a respeito do que deveria ser a prioridade em qualquer plano de governo: melhorar de fato a educação. Mas infelizmente não é assim.
Hoje, li uma frase famosa do Ali Babá Paulo Maluf, aquele que "não tem e nunca teve conta no exterior", nos tempos em que ele era governador de São Paulo indicado pela ditatura militar: "As professoras não são mal-pagas. As professoras são mal-amadas". Corresponde à recente declaração do governador do Ceará, outro estado que enfrenta uma greve longa do magistério (no caso do Ceará, assim como em MG no ano passado, a greve foi considerada "ilegal" pela Justiça, a pedido do próprio governo do Estado). Cid Gomes não foi indicado, foi eleito, mas a frase é um paralelo total à manifestação de Maluf: "O professor deve trabalhar por amor e não por salário".
Nem vale a pena comentar nada. O fato é que o primeiro passo para melhorar as condições gerais da educação está diretamente ligado à melhoria do salário dos professores. Inclusive como uma forma da sociedade exigir excelência de ensino: professor, você ganha bem, portanto, quero qualidade de educação.
Enfim, uma vez mais publico fotos de minha amiga Julia Lage, um ensaio que pode resumir o pensamento do governo AnastAZIA sobre a educação no estado. 
Para refletir. 
Um dia, a humanidade inteira se ajoelhará e pedirá perdão aos seus mestres.





segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Meus velhos e minhas crianças

Eu gosto de fotografia, apesar de até hoje jamais ter obtido um equipamento profissional. Sempre fotografei com o que deu: uma Zenit que pesava como um fusca, e que foi minha primeira escola de luz-e-sombra no sertão; uma Olimpus básica de rolo, que eu troquei pela Zenit quando ela quebrou pra nunca mais voltar a fotografar, e por fim, uma Cybershot que acabou tendo um triste fim, bem como a Samsung que a substituiu. Como podem ver, sou um destruidor de câmeras.
Uma vez, tive uma conversa de que não esqueço, com o grande fotógrafo pontagrossense, Raul Bianchi, infelizmente não mais pertencente a este mundo. Ele, herdeiro durante anos do acervo Bianchi, um dos mais importantes acervos fotográficos do Paraná, filho e neto de fotógrafos e irmão de cineasta, me disse que, para me tornar um bom fotógrafo, eu devia exercitar o olhar. Com um olhar treinado, seria possível fazer boas fotos. Sem olhar, não importa o equipamento, eu jamais seria fotógrafo. Levei isso a sério, e desde então, ainda que de maneira amadora e com mais erros do que acertos, venho treinando meu olhar.
Ao migrar para a fotografia digital, da qual busco usar não os milhares de recursos disponíveis, mas sim explorar os recursos básicos de forma mais esgarçada possível, continuei errando e acertando, perdendo a foto da minha vida várias vezes. Mas sem desistir daquilo que mais gosto de fotografar: retratos de pessoas comuns, em situações comuns de suas vidas.
Busco uma maneira de fazer a paisagem trabalhar em função das pessoas, e em geral, eu procuro intuitivamente uma noção de enquadramento, cor e luz que favoreçam a emoção que porventura a pessoa fotografada possa fazer aflorar em mim, que a olho detrás de uma lente. 
Já perdi muitas fotos por pudor em invadir a privacidade alheia, mas também consegui algumas coisas que me agradaram bastante.
As fotos deste post demonstram um pouco disso.
A imagem das crianças marcou uma viagem existencial que fiz, em 2002, em companhia de meu grande amigo Zé Ronaldo Ribeiro. Fiquei com ela por sete anos, até que, depois de muito custo, consegui entregar uma cópia aos retratados, no ano de 2009, quando voltei à Monte Santo. Toda vez que a revejo, percebo até hoje essa imagem carregada de ternura e de uma imagem que eu busco o tempo todo, difícil de traduzir em palavras, mas que os sorrisos das meninas e do menino sertanejos, todos irmãos, expressam com mais facilidade.
Monte Santo, Bahia, 2002. A prova de que o olhar é mais importante que a tecnologia.
O olhar das crianças das fotos seguintes, também tiradas na Bahia, mas em 2009, revela aquilo que eu gosto de registrar, e que é difícil de conseguir. Na primeira, o sorriso e olhar de pureza do menino entre os sacos de cimento, sempre me pareceu um encontro de elementos que, por inusitado, chega a quase celestial. É uma das minhas preferidas, e forma um tríptico interessante com as duas outras crianças, que parecem oferecer à lente do fotógrafo toda sua ternura e alegria infantis.

Um sorriso tranquilo, entre a dureza do cimento e das pedras. Cachoeira, Bahia, 2009.

A infância em uma comunidade quilombola, à beira do Rio Paraguassu. Recôncavo Baiano, 2009.

O enorme olhar de encantamento diante da apresentação do circo, em pleno sertão. Monte Santo, Bahia, 2009.
Eu fotografo para mim, e por isso, sempre tive certo pudor em expôr meus retratos. Procuro, sempre que possível, entregar cópias às pessoas que se deixam retratar. Vejo as fotografias como um espelho do que eu sou e do que eu busco. As fotos são também uma busca de poetizar e eternizar determinados momentos, como se fosse possível congelar por um segundo o intervalo entre a juventude e a velhice, que se expressam paradoxalmente da mesma maneira.

O sorriso na janela que me fez ter a certeza de já haver estado ali, antes. Pelourinho, Bahia, 2009.
Tecer a vida? Pelourinho, Bahia, 2009.

Coser os sonhos? Coqueiros, Bahia, 2009.
Os fotógrafos sabem que raramente há passividade diante da câmera, e que as escolhas daquilo que se retrata sempre exprimem uma ideologia e uma visão de mundo. Não fujo disso.
No caso dessas imagens, creio que, na maioria das vezes, tive a sorte de contar com modelos que não se mostraram refratários à ideia de serem retratados, e por uma compreensão também intuitiva, se doaram ao meu olhar sinceramente, espontaneamente. Estou ciente de que todos me deram muito mais do que eu poderia lhes oferecer.
Esse é o caso das crianças que brincavam às margens da baía do Rio Paraguai, em Assunção. Todas eram moradoras da favela La Chacarita, que é vizinha dos principais prédios públicos e religiosos da capital paraguaia. Um contraste e tanto, que oferece também uma leitura peculiar de "nuestra América". Porém, como todas as crianças livres do mundo, os meninos assuncenhos viviam alheios, entre suas pandorgas e folguedos, aos temas caros à sociologia do continente. Pareciam se divertir com o fotógrafo estrangeiro.

Os meninos de Assunción, com pandorgas e folguedos...
...divertiam-se com o fotógrafo estrangeiro. Assunción, Paraguay, 2009.
Diante dessas e de algumas outras fotos, reflito que o objetivo deste blog, dar vasão à minha necessidade de ver e contar sobre o que vejo, tem sido cumprido.
Vou continuar cometendo estes desatinos.

domingo, 24 de julho de 2011

"Adeus" apenas com palavras


E este blog não encontra palavras, sem parecer piegas, chorão ou carpideira mórbida, pra dizer o quanto Amy Winehouse vai fazer falta neste mundo insosso, cheio de mauricinhos, menininhas superficiais e zés-manés sem graça.
Também imagino que os falsos-moralistas, os moedeiros do templo, hão de me condenar, como condenaram em vida esse cometa judeu de Londres, que nos encantou, elevou nosso espírito, embalou nossas fossas, neste curto período em que pudemos privar de sua voz.
Mas tudo bem, os falsos-moedeiros jamais terão nem sequer a capacidade de compreendê-la, nem sequer a sombra de seu talento, que agora, é apenas saudades.
Uma vez mais a velha história da heroína, amada por todos, menos por si mesma.
Uma lástima.
E o sinal irrefutável de que o tempo não para.

"We only say goodbye with words
I died a hundred times 
You go back to her 
And I go back to black"

domingo, 3 de julho de 2011

A morte torna a todos bons

Morreu Itamar Franco, ex-presidente da República, ex-governador e Senador.
A repercussão sobre o seu passamento foi floreada de exéquias, honrarias, elogios. A mídia oficial fez seu papel uma vez mais, incensando a aura do morto como um "estadista", um "político honesto", um "homem de visão", que esteve sempre ao lado do povo, e que, mesmo quando longe de sua querida Minas Gerais, jamais deixava de glorificar suas raízes.
Tudo muito bom, muito bonito. Comovente observar as manifestações de políticos, como o atual governador mineiro, Antonio Anastasia (que me dá azia) "emocionado", chorando ao ler um discurso em homenagem ao ex-presidente. Também foi lindo ver o senador Aécio Neves, o narigudo beberrão, eleito na dobradinha com Itamar Franco ao Senado da República, falar da "longa parceria", e de que a perda de Itamar era como "perder um pai". 
E o que dizer da presidenta Dilma, que decretou luto oficial por uma semana, e falou em "exemplo de honradez"? E do ex-presidente Lula, para quem sem Itamar "a democracia não teria se consolidado"? E do senador Fernando Collor, que chamou o falecido de "companheiro digno, ético e coerente"? E FHC, que o fez "incorruptível", um homem "a quem deve muito"?
Poderíamos seguir com vários exemplos dos mais altos elogios, de nobres dignatários de nosso poder, ao falecido político mineiro. 
A mídia, sempre a serviço de factóides, e sem nenhum lapso de auto-crítica, repercute a ideia de que o Brasil ficou órfão de um grande estadista. 
Muito interessante. Entretanto, a morte do político me fez lembrar de algumas coisas que, enquanto estava vivo o homem, não condiziam muito bem com a imagem angelical que se tenta passar após sua morte.
Pra começar, lembro que na época em que foi galgado ao epicentro do poder, como vice-presidente de Fernando Collor, afastado no mês de junho de 1992, e que terminaria por renunciar ao mandato para evitar o impeachment (que assim mesmo sofreria), Itamar era visto como um personagem quase folclórico. Sua postura como vice-presidente em um momento de crise, repetindo uma vez mais as inúmeras vezes em nossa história em que a democracia esteve por um fio por conta da vacância do cargo-mor de nossa República, colocou o político mineiro, conhecido por sua parcimônia, nas cordas. 
Ele pedia à imprensa que não o tratasse como "presidente", mas como "vice-presidente no exercício da presidência", e assim foi até que Collor deixou o Planalto pela porta dos fundos.
Lembro bem a sensação que se tinha à época: éramos país sem governo, com um presidente constrangido, surpreso e sem ação. 
Por isso mesmo, Itamar foi retratado como um homem de atitudes lentas, de dúvidas, que não se sentia confortável diante das responsabilidades que o momento histórico lhe impunha.
Um exemplo disso é a charge do cartunista Paixão, publicada em 1993 pelo jornal Gazeta do Povo, de Curitiba. O presidente retratado como um caracol, e seu famoso topete fazendo as vezes da casinha do bicho que rastejava entre indecisões e falta de atitude de um governo morno:
Na charge de Paixão, Itamar é comparado a um caracol.
Ao morrer, Itamar foi chamado de "um homem de visão futurista" por vários articulistas. Uma imagem e tanto para um político que pediu à maior montadora de automóveis do país que voltasse a fabricar seu modelo mais antigo, fora de linha há quase dez anos e símbolo do atraso de uma indústria que havia sido acusada por seu antecessor de fabricar "carroças". Segundo as crônicas da República do Pão de Queijo, o pedido na verdade era uma promessa do presidente a sua namorada, que era apaixonada pelo modelo.

Itamar Franco, um homem futurista, cavalga o modelo mais anacrônico da Volkswagen

Itamar, o político exemplar e honrado, exaltado como "namorador" pela imprensa após a sua morte, foi protagonista de uma das mais constrangedoras gafes já cometidas por um chefe de estado. No carnaval de 1993, em pleno Sambódromo, o "namorador" Itamar foi fotografado ao lado da atriz pornô Lílian Ramos, em uma imagem que correu o mundo e envergonhou a Presidência da República - sem falsos moralismos, afinal, o Brasil é um país do sexo. Mas convenhamos, não fica bem para o cargo que ocupava o Presidente da República ser fotografado bêbado, acompanhado de seu ministro da Justiça, Maurício José Corrêa, também alcoolizado, numa farra  ao lado de uma piriguete com a genitália exposta.
Itamar e a perereca que abalou a República. Neste momento, o ministro da Justiça dormia em algum canto do camarote.

A posse, depois de seis meses em que o "vice no exercício da Presidência" deixou o país sem governo. À sua esquerda, o então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, companheiro de Itamar no Sambódromo. Ao fundo, FHC, ainda inexpressivo ministro da Fazenda.
Para finalizar, a ideia de um estadista que era fiel parece contraproducente quando observamos a carreira de Itamar Franco. Eleito Senador pela primeira vez em 1974, na onda dos votos de protesto que colocaram em xeque a Ditadura Militar na primeira eleição desde o Golpe, Itamar foi na maior parte de sua vida filiado ao PMDB. Mas, em 1986, contrariado por não conseguir a indicação de sua candidatura ao governo de Minas, deixou o partido e filiou-se ao PL. 
Campanha de Itamar Franco ao Senado, em 1974. O prefeito inexpressivo foi eleito na onda oposicionista que pôs em xeque o Regime Militar.
Em 1989, filiou-se à legenda de Fernando Collor, o extinto PRN, para se candidatar à vice-presidência da República. Catapultado pela crise do impeachment à presidência da República, voltou ao PMDB antes de terminar seu governo, quando elegeu Fernando Henrique Cardoso na onda Real. Afastou-se de FHC, a quem chamou de "traidor", por se considerar passado para trás durante o golpe da reeleição (Itamar pretendia se candidatar à presidência novamente em 1998), e apoiou Lula, tanto em 1998 quanto em 2002.  Com a eleição do ex-metalúrgico, foi presenteado com a Embaixada em Portugal. Mas como desejava um ministério, viu-se outra vez desprestigiado pelo Planalto e voltou à oposição.
Itamar e Collor tomam posse em 1990.
Os dois ex-presidentes se reencontram no Senado, em 2011.
 Finalmente, em 2010, aos 80 anos de idade e sem anunciar a doença que acabaria por levá-lo à morte, foi eleito Senador oposicionista pelo PPS, numa dobradinha com Aécio Neves, em chapa que tinha na primeira suplência ninguém menos que o cartola Zezé Perrella, dirigente do Cruzeiro Esporte Clube, que agora se vê galgado ao Senado e ganha imunidade parlamentar num momento em que é acusado de inúmeras falcatruas, tráfico de influências e corrupção. 
FHC toma posse com apoio de Itamar, que poucos anos depois o acusaria de traição.
Itamar apoia Lula em 2002. Queria um ministério, recebeu a Embaixada em Portugal. Passou logo à oposição.

Itamar apoia Serra em 2010. A morte do político não permitiu saber quais seriam seus próximos passos.

Morto, Itamar Franco passa à galeria dos heróis nacionais, ainda que em vida sua trajetória tenha sido irregular e controversa.

Zezé Perrella: rindo à toa pela imunidade parlamentar adquirida sem nenhum voto, e que o livra de condenações e processos.  A última obra de Itamar.



Esse foi Itamar Augusto Cautieiro Franco, um mineiro nascido em Salvador, um camaleão que deixa a vida para entrar na história mórbida de um país que costuma transformar seus mortos em heróis, ainda que para isso seja preciso reescrever e reinterpretar os fatos.



segunda-feira, 13 de junho de 2011

Um ícone do ciclismo em BH

(As fotos deste post foram realizadas por Julia Lage)


* No dia em que esta postagem foi publicada,  em São Paulo houve o atropelamento e morte  do ciclista Antonio Bertolucci. Sua morte teve destaque nacional porque, além de aficcionado por bicicletas, ele era presidente do Conselho de Administração do Grupo Lorenzetti, fabricante de chuveiros. Muitos anônimos, trabalhadores e desportistas, perdem a vida nas grandes cidades por descaso, truculência e descumprimento das leis. Até quando? 


Armênio Silva: 90 anos de idade, quase 80 deles dedicados ao ciclismo.

Em Belo Horizonte, circula um mito urbano de que a cidade não é "apropriada para o ciclismo". Diz-se isso por aí devido ao fato da topografia da capital mineira ser bastante irregular, contando com diversas ladeiras de tirar o fôlego. Isso tem servido de desculpas para o Poder Público lavar as mãos e simplesmente esquecer o transporte por bicicleta como uma alternativa ao nosso caótico trânsito - ainda que recentemente, tenha-se quase por milagre incluído uma ciclovia no projeto de revitalização da Via Expressa.
Nada mais equivocado, já que as bicicletas modernas podem ser equipadas com sistemas de marchas que suavizam o esforço diante das piores ladeiras. E, cá pra nós, subir, pode até não ser fácil, mas descer uma ladeira de bicicleta com o vento na cara proporciona uma sensação de prazer única. 
Pois, como um dos inúmeros paradoxos que encontramos nesta imensa metrópole, aqui vive um homem que poderia, por sua história de vida, ser considerado um verdadeiro Herói do ciclismo. Trata-se de Armênio Silva, 90 anos de idade a serem completados em 23 de novembro próximo, e pelo menos 80 deles dedicados ao ciclismo. 
Glórias passadas em duas rodas
Armênio é dono da mais tradicional bicicletaria de Belo Horizonte, situada na rua Sergipe, 150. É ali que há quase 70 anos ele conserta, avalia, compra e vende peças e objetos ligados ao ciclismo. E é ali, também, que está boa parte da memória da Federação Mineira de Ciclismo, da qual Armênio Silva foi presidente durante  vários anos, além de um de seus principais atletas.
Nascido em 1921 na cidade de Riacho dos Machados, norte de Minas Gerais, Seu Armênio é o sétimo filho de 13 irmãos. Hoje, é o único sobrevivente "não sei por que, são coisas que não se entende, mas o fato é que só eu fiquei". 
Quando tinha 7 anos, ganhou sua primeira bicicleta de seus irmãos mais velhos, e desde então, soube que sua vida estaria de alguma maneira ligada à magrela. Ele não tem dúvidas que chegou à idade que tem, em perfeita saúde e em plena atividade, por causa da prática do ciclismo: "Graças ao ciclismo, cheguei aos 90 anos. E ainda hoje, meus clientes são em sua maioria rapazolas. Infelizmente, hoje o ciclismo não é mais o que era - não tem patrocínio e é muito difícil se manter como esportista". 
Seu Armênio teve que abandonar o esporte por recomendações médicas há menos de 5 anos - sua última bicicleta "pesava 10 quilos". "O ciclista deve estar sempre alerta, e nesta idade, a saúde já não permite a total atenção".
Na década de 1940, veio a Belo Horizonte e se empregou como gerente da Casa Martins, uma das antigas casas de ciclistas, que ficava na rua Curitiba. 
Em 1941, fundou a Casa do Ciclista, que até hoje está no mesmo endereço, atrás da Igreja de Boa Viagem, vizinha ao famoso Clube da Esquina, na rua Sergipe, no Centro de BH.
Armênio Silva disputou vários campeonatos mineiros, no tempo em que a Federação Mineira de Ciclismo era  uma entidade importante, com campeonatos disputadíssimos. Disputou o Campeonato Brasileiro de Ciclismo em quatro ocasiões, e chegou em 3.º lugar em 1946 - sua melhor colocação. 
Quando presidente da FMC, seu Armênio foi responsável pela separação das categorias de motocicleta e bicicleta, que eram agrupadas na mesma entidade. Homem das duas rodas, correu em competições por várias vezes com sua clássica inglesa Douglas de quadro elástico. 
"A vida, para quem quer viver, tem que conter a prática de esporte. O ciclismo é a única explicação para eu estar vivo e com saúde. O esporte é vida, e o negócio da vida é saber viver", diz sob um sorriso sincero de alguém que é a prova viva de suas palavras. 
Seu Armênio nunca bebeu, fumou ou "teve vícios", e me garante que só bebe chá - "nunca bebo café, que é estimulante demais". 
O mais peculiar disso tudo é que, diante de sua longevidade e alegria, fica sem sentido a ideia de que BH não serve para ciclistas. Quem dera o exemplo de seu Armênio fosse levado como um modelo!
É uma pena que nossos administradores não percebam e não estimulem o ciclismo - não apenas como esporte, mas como meio de transporte e filosofia de vida. Sem dúvidas, a bicicleta traria uma forma mais humana de se pensar a cidade. 
Ao terminar minha conversa com Armênio Silva, fiquei pensando - será que no futuro, daqui a 70 ou 80 anos, teremos a honra de contar com personagens únicos, tão fantásticos em sua simplicidade, e tão essenciais para a alma de BH e do Brasil, com sua vitalidade e beleza? 











A flâmula da Federação Mineira de Ciclismo





Vou pedalar as próximas décadas para descobrir...