domingo, 2 de outubro de 2011

Memórias do Recôncavo Baiano: O gabinete de Doutor Caligari e a oficina do Zé Sapo



Em São Félix, cidade vizinha a Cachoeira, separadas e unidas pelo rio Paraguassu, em uma noite de verão, depois de passear aleatoriamente pelas vielas coloniais, fumando charutos, deparei-me no alto da ladeira Quebra-Canela. Do alto da rua, é possível avistar ambas as cidades, o rio que corre lentamente e a ponte de ferro, construída a mando de Dom Pedro II, que segundo a lenda, teria trazido o material diretamente do Canal de Suez. Conheci dois irmãos músicos, e ficamos um tempo cantando canções, acompanhados por cordas de aço, enquanto lua crescente se punha, e deixava a noite cheia de estrelas.
Realmente, uma daquelas cenas poéticas, inesquecíveis, da vida. Algo que na Bahia é ainda é possível acontecer, sem a influência da máfia do axé.
Eu havia decidido, naquele momento, deixar minha câmera no hotel: em viagens, eu sempre tiro muitas fotos, mas eventualmente, dedico um ou dois dias para sair a toa, sem o equipamento. Mesmo que isso signifique a perda daquilo que teriam sido fotos marcantes. É uma maneira de treinar o olhar através da observação dos detalhes. Ver e refletir ajuda a perceber o que fotografar, e é uma maneira de não se tornar obcecado pelo equipamento.
Obviamente, as imagens que ilustram esta postagem não se referem ao seu conteúdo.
Por estar sem a câmera, eu decidi que iria prestar o máximo de atenção a tudo o que acontecesse naquele passeio. Meu desejo era registrar fotograficamente na minha mente cada detalhe e sutileza de que eu fosse testemunha.
Desci a ladeira, e quando estava no meio da ponte, outra cena me chamou atenção. Vários pescadores aproveitavam a vazante da maré, e jogavam uns bons 20 metros de linha de nylon, devidamente presa a um novelo. O método de segurar a linha usado pelos pescadores se assemelha ao modo como garotos soltam pipas: a linha enrolada em um carretel, vai ao sabor da força do rio, e o pescador só tinha o trabalho de controlar, dando ou recolhendo linha, quando sentia que algum peixe fisgava a isca.
A pesca na ponte rendia tainhas, robalos, acarás, tucunarés, entre outros peixes, não muito grandes. Fiquei ali observando os pescadores por uns bons 30 minutos. Depois, fui até a pracinha, onde encontrei duas hóspedes da pensão em que eu estava hospedado, e elas me apresentaram a grande figura de Cláudio, conhecido como “Curto”. Um rapaz de 26 anos, que trabalhava como restaurador, mas se encontrava desempregado. Era realmente o cara por quem eu estive buscando desde minha chegada ao Recôncavo: através dele, consegui cadeado e bicicleta, e foi ele quem guiou a mim, Susan e Marcelo até a represa da Pedra do Cavalo, para tomar um delicioso banho de rio no dia seguinte.
Para chegar à barragem, atravessamos as duas cidades sob um sol escaldante, entre casebres coloridos, varais multicoloridos, pessoas que iam, vinham, crianças que brincavam, entre uma profusão de cheiros e sons.
Na volta, justamente a minha bicicleta sofreu uma pequena avaria: o parafuso que prendia o guidão simplesmente espanou, na metade do caminho. A busca por um conserto me proporcionou a vivência de algumas situações peculiares e particularmente inusitadas. Pra começar, é preciso dizer que o caminho foi feito pela rua Manoel Vitorino. Os casebres coloridos adornavam os dois lados da rua de paralelepípedos, que contorna um morro. Varais coloridos entre pessoas sorridentes, comadres que fofocavam, a maioria das população afrodescendente, me davam a cada segundo a sensação fantástica do Brasil em sua essência.

Avistei, numa garagem, uma máquina de caldo de cana. Parei e perguntei ao senhor gordo e bonachão, um amabilíssimo avô de olhos verdes e ternura, se poderia me ajudar. Ele levantou-se, foi ao fundo de sua casa, enorme como sua própria alma, grande o suficiente para caberem nela todos os seus filhos, filhas, genros, noras e netos. Enquanto isso, eu me deliciava com o mais doce caldo de cana de toda minha vida. Ele voltou com uma caixa de ferramentas feita de couro. As crianças se divertiam comigo, riam da cara do “estrangeiro”. Após ele apertar meu parafuso, eu agradeci, paguei pelo caldo de cana, e segui adiante, somente para constatar, duas quadras depois, que o parafuso estava frouxo novamente...
Segui empurrando a bicicleta. Acabei entrando num armazém, comandado por um velho carrancudo. O armazém era uma réplica em cores do próprio Gabinete do Doutor Caligari, com o próprio Caligari sentado ao fundo, cercado de prateleiras rústicas de madeira, com vários tamanhos e encaixes, um boteco obscuro que vendia farinha, grãos, sementes, cachaça, sabão, carne seca e outros produtos de secos e molhados. Seria perfeito cenário para um filme expressionista. No armazém, enquanto esperava pelo filho de Caligari buscar ferramentas, eu notei um bebedouro de beija-flores, bem no centro do barracão. De repente, vários pássaros entraram fazendo barulho, e bebiam água, enchendo o lugar de cor e perfume – um contraste gritante que trouxe beleza e iluminou o obscuro ambiente rústico, comandado por um velho homem de expressão dura. O único instante em que o vi esboçar um sorriso foi justamente quando dois beija-flores começaram a disputar espaço no bebedouro. “Elas sempre brigam por causa da água, essa ali é a mais tinhosa”, foi o que ele disse, referindo-se aos pássaros no feminino, para imediatamente voltar para sua posição enfurnada e carrancuda na poltrona, onde devia estar sentado há 300 anos.
Seu filho retornou e me emprestou uma chave inglesa (pequena demais) e um alicate (que não funcionou). Ao virar para a porta de saída, me deparei com outra cena de pássaros: na loja de Caligari havia três gaiolas, com pássaros presos que davam a sensação absolutamente oposta à dos beija-flores: tristeza, agouro, olhos esbugalhados. Olhei uma vez mais para o velho e segui meu caminho.


Informado por algumas pessoas, descobri finalmente, debaixo da ponte de ferro, a oficina de Zé Sapo. Uma oficina de bicicletas! No fundo da loja, Zé Sapo arrumava uma roda e não percebeu minha chegada. Falei alto:
- Boa tarde!
Ele me olhou.
- Estou com um pequeno problema. O senhor pode me ajudar?
Ele se aproximou, viu o tipo de parafuso, voltou para o fundo da oficina, abriu uma gaveta numa mesa, e me deu uma chave.
- Aperte aí.
Eu apertei.
- Está espanado.
Ele ordenou:
- Tira isso aí.
Obediente, fiz o que me disse, enquanto ele voltava para o fundo da sua pequena e caótica oficina. Remexeu em várias sacolas e pacotes plásticos, até que por fim encontrou um pacote de parafusos novos. Abriu-o grosseiramente, tirou um, jogou o pacote no fundo da gaveta, voltou em minha direção, colocou o parafuso no guidão, girou a porca e a arruela, opostas à cabeça do parafuso, deu-me outra chave e ordenou:
- Aperte!
Obediente, eu o fiz. Deixei bem firme, e lhe disse.
- Acabei. Quanto lhe devo?
- 70 centavos.
Tirei do bolso 75 centavos, entreguei a ele e agradeci.
- Obrigado a você. Fique com Deus.
E eu pude continuar meu passeio, agora, em busca de meus amigos que haviam se afastado. Como não os encontrasse, resolvi seguir minha intuição e fui em frente, por outro caminho, exatamente oposto ao caminho da tarde. A rua era mais estreita ainda, e ladeada pelo trilho do trem. Passar em meio a todas aquela gente, vivendo uma vida comunitária, em pequenos casebres, e observar como na boca da noite elas ficavam em frente a suas casas, adornadas por cadeiras e redes, onde homens e mulheres, jovens, velhos e crianças, cachorros, gatos e cavalos, se misturavam numa profusão absurda de imagens, cheiros e situações, me traziam a sincera sensação de uma alucinação onírica intensa. E as pessoas me observavam, também curiosas: eu, de boné, sem camisa, suando, pedalando, arfando, um verdadeiro intruso àquele mundo, sem parar de pedalar, até o alto da rua. Lá no alto, sentado em frente à sua porta, um velho negro, cego de uma das vistas. Eu o cumprimentei e fiz menção de que retornaria beirando o trilho, e então ele me disse;
- Não será perigoso?
Diante do espanto daquela declaração, eu perguntei:
- O senhor acha?
- Ah, eu acho que pode ser, né? E se vier o trem, fica pouco espaço pra gente.
- Então, vou seguir seu conselho e voltar por onde vim.
No retorno, com mais velocidade, o vento abafado na cara, eu me senti realmente nas entranhas do Brasil, no mais profundo e ignoto universo tropical.
Uma cena tirada de um livro de Joseph Conrad. E eu era o protagonista.

Um comentário:

  1. Gostei muito do passeio, pedalar pro lugares não familiares é uma sensação muito gostosa.
    Apreciei o fato de não levar a câmera fotográfica, eu não consigo fazer isso, sempre levo. A diferença é que a minha é no celular, e que normalmente, quando o trajeto é ida e volta pelo mesmo lugar, só tiro as fotos na volta.
    Belo passeio, belo relato.
    PArabéns

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