Eis a aurora do novo Brasil que já nasce velho.
Foto: Pedro Ladeira, FolhaPress. |
Acordamos, outra vez, aturdidos pela avalanche de acontecimentos aparentemente inesperados na condução dos jogos do poder, que nos levarão a não se sabe que porto incerto - ou a que nova tempestade. Tivéssemos a maioria de nós, por um momento que fosse, a "consciência histórica" sobre o que hoje nos parece um sobressalto, uma surpreendente reviravolta em um processo que a até alguns segundos parecia firme, isso não nos surpreenderia tanto.
A verdade é que a história da ficção chamada Brasil, ainda que queiram os mais ufanos (e portanto, mais presos à cegueira) pintá-la de gloriosa, é e sempre foi a expressão da mais profunda leniência, da mais trágica mediocridade, da mais cruel ignorância, da mais infame servidão e da sublime incongruência de um povo que sempre preferiu ser espectador de sua própria história. Uma vez mais, isso está evidente, diante dos lamentáveis acontecimentos que tomam corpo no dia de hoje.
É lamentável também, sob todos os aspectos, que a maioria de nós prefira o conforto da alienação e do individualismo (in)consciente, e prefira novamente entregar sem contestação aos seus verdugos de sempre a vida, a força, o trabalho, a cultura que poderiam já ter feito de nós, há muito tempo, uma nação ímpar dentre todas as outras. A situação de hoje parece mais grave ainda porque, ao contrário dos livros de história, estamos vivenciando o processo que é o auge de outro atroz retrocesso em nossa errática trajetória.
Nossa constituição como nação é, de per se, historicamente marcada por percalços e violências, alienação e servidão. Nossa linha do tempo resume-se na submissão coletiva à ordem autocrática que sempre nos impeliu a entronizar as estruturas sórdidas dos poderes fundados em nome dos direitos "divinos" de alguns. A esses, sempre se permitiu a autonomia, a terra, o usufruto de espaços públicos e privados, a educação, a saúde, o trabalho e a vida dignos. E aos outros, a imensa maioria, permite-se apenas contentar-se com as rações cotidianas que mal servem para manter em pé o mínimo possível para ser qualificado humano, no limite da animalidade - e me refiro aqui não apenas ao flagelo da falta de comida, mas principalmente à fome de justiça, de educação, de autonomia e independência, que sempre foram negadas à maioria de nosso povo - e das quais, ao que se parece, nosso povo, paradoxalmente, nunca sentiu falta.
Ao longo de nossa história, nos constituimos como uma sociedade de castas, com as elites econômicas e sociais, os donos dos meios de produção e comunicação, e, portanto, os donos das almas, capitaneando os benefícios dos frutos gerados pelo suor e pelos esforços de todo o resto da massa. Nosso povo segue sua trajetória, sem objetivos maiores ou mais gloriosos, que seriam ou deveriam estar simbolizados no construir de fato uma nação. É um sintoma disso a constatação de que seja justamente entre o povo que se encontrem aqueles que defendem e garantem a "ordem" do "direito divino" das elites aristocráticas, mesmo não tendo os defensores da "ordem", na maior parte das vezes, acesso senão às migalhas e sobras das delícias que são destinadas à aristocracia rural-urbano-industrial, sentadas sempre sobre o latifúndio das terras e dos meios de produção e de comunicação. À ralé, resta sobreviver a cada dia, tarefa mais do que árdua, mas sempre feita sem contestação, porque a ralé segue anestesiada com as mentiras e seduções superficiais que lhes são empurradas goelas e mentes abaixo através da crueza imbecilizante da sociedade e da religião do espetáculo, vendidas a crediário.
Caímos outra vez no "conto da pátria amada". A mesma mentira que fez os escravos e libertos sem-terra se convencerem de que iam à Guerra do Paraguai "defender a terra brasileira" - terra esta que nunca lhes pertenceu, e que jamais foi ameaçada pelos paraguaios, não ao menos como queriam fazer crer os senhores do Império, e que nem mesmo ao fim da guerra, lhes foi concedida. Desta vez, com o acréscimo da segregação e da secessão entre setores do povo e da assim chamada "classe média", vivemos no limiar da aniquilação do que poderia ser o gérmen de um pensamento crítico. Não há espaço, nem lugar, para o que seja contraditório. Vivemos tempos obscuros, absolutistas, em que a lei do mais forte - ou do que tem mais força para gritar - se sobrepõe ao diálogo. Isso tudo segundos depois de, tal qual na história platônica, uns poucos terem vislumbrado uma nesga de iluminação. Aqueles que viram luz foram conduzidos coercitivamente, para usar uma expressão que em muito sintetiza o momento, a voltar às correntes, à escravidão, à cegueira do rosto acorrentado contra a parede, pois a luz foi entendida outra vez como ilusão pela maioria cega, e mais ainda, evocá-la foi considerado subversão pelos donos das tochas que projetam sombras à caverna.
É isso. Escolhemos nosso destino, e não há como contestá-lo. Escolhemos a escravidão à autonomia, à preguiça de pensar à auto-crítica, a televisão à emancipação, o individualismo ao sentimento de nação, a segregação à união, a inveja à cooperação.
As consequências do que ocorre hoje , somente o tempo vai comprovar. Mas temo que, num futuro não muito longínquo, a ideia de "Brasil" quiçá seja entendida como mero lampejo, arco-íris de um povo que poderia ter sido e que não foi, do país que poderia ser autônomo, indepentende, grandioso, colossal, o "florão da América iluminado ao sol", como evocam as falsas glórias de nossos hinos e cânticos de guerra, mas que por razões incompreensíveis, preferiu se apequenar, se ajoelhar, se acovardar diante de suas próprias contradições.
"Triste de quem é feliz"(1). "Pobre de um país pobre de ideias" (2).
Pobre Brasil: tão longe de Deus, tão perto do pré-sal.
Temos muito a "temer", mas não podemos negar que este destino foi o que escolhemos.
Aceite-mo-lo, pois.
"Não resta nada a dizer"(3).
(1) Fernando Pessoa.
(2) Paulo Leminski.
(3) Samuel Beckett.