Neste texto, não usarei o epíteto "Ponga Trossa" para me referir à Princesa dos Campos, como tem sido contumaz em algumas manifestações orais e escritas.
A relação com minha cidade natal, Ponta Grossa, Paraná, sempre foi marcada por múltiplas ambiguidades. Nascido e crescido aqui, desde a adolescência, fui tomado por uma espécie de obsessão: abandonar de vez a tediosa Princesinha dos Campos, a cidade conservadora, quatrocentona, retrógrada, careta, que agredia com seu retrocesso e burrice, e cujo maior símbolo foi para mim, durante o longo tempo em que aqui vivi, o sentimento constante de deslocamento e antipatia aos círculos sociais habituais, que marcou boa parte de minha trajetória. Saí, mas meu retorno é sempre marcado por sentimentos alternados, a nostalgia e a beleza junto da constatação da estupidez e rude recriação dos espaços urbanos.
No entanto, tal situação de sentir-se nômade bérbere dentro de seu próprio "lugar de origem", permitiu o treino de um olhar observador, desde tenra idade atento a detalhes que em geral passavam despercebidos, ou então eram deliberadamente desvalorizados e esquecidos pelos agentes oficiais - públicos e privados. Tal desvalorização contaminou sobremaneira o cidadão-médio e as camadas periféricas da cidade que acabou por se tornar padrão a auto-imagem negativa e destrutiva sobre o passado e a memória ao longo de várias décadas.
Por ter sido o descaso histórico objeto da análise, dos estudos e das pesquisas de intelectuais mais gabaritados do que eu no meio acadêmico, opto por escrever sobre a
city de uma maneira mais poética, sentimental, menos analítica ou marcada pela tentativa de compreender à luz da sociologia os meandros de sua transformação urbana. Optei apenas por observar, com o olhar de ex-habitante, que ainda se permite participar de algumas cenas.
Tive talvez minha maior lição de fotografia em meados de 2001, quando por acaso encontrei o fotógrafo Raul Bianchi tomando sua cerveja no balcão do antigo Fundo de Quintal na rua XV. Naquela ocasião, ele me disse: "Treine seu olhar. O bom fotógrafo é sobretudo um observador de detalhes e instantes exatos, que são irrepetíveis combinações de luz e ação. Quem observa, ainda que tenha uma câmera Xereta, conseguirá produzir boas fotos. Quem não observa, mesmo com o melhor equipamento, as melhores lentes e os melhores recursos, jamais conseguirá uma boa fotografia".
Dentro do espírito desta filosofia, as imagens que ilustram este post foram feitas com a câmera de um celular Motorola já meio capenga. Reconheço que a captação não foi das melhores - bem como a técnica do fotógrafo. Mas procurei colocar o sentimento do dia de hoje no olhar dessas fotos.
Coisas inusitadas e peculiares preencheram o dia. A começar, o encontro incomum com um beija-flor que, talvez assustado ou afetado pelo calor, sentou-se num poste e quase se deixou acariciar - quando toquei suas costas, ele saiu voando e sentou-se no fio de luz. Ao longo do dia, encontrei duas carcaças outras de beija-flores, o que me fez pensar se algum tipo de situação poderia estar causando a morte desses pássaros.
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Um beija-flor vivo |
A PG que busco todas as vezes que tenho a oportunidade de vir pra cá com tempo livre é a mesma que encantava meu olhar de menino-adolescente, quando eu vadiava perambulando a esmo - "parmiando" Ponta Grossa desde priscas eras.
Percebi muito cedo que a destruição do centro histórico, iniciada na década de 1970 e ainda não concluída totalmente, jogava fora não apenas o mais importante e representativo conjunto arquitetônico do Estado. Também censurava de maneira insensata e injustificada as visões da cidade às novas gerações - visões que vem sendo distorcidas, destruídas ou apagadas a partir de sucessivas decisões equivocadas dos detentores das "leis". A cidade pôs abaixo sem cerimônia, sem pudor, e por vezes de forma cínica, todas as referências históricas importantes de seu passado - a começar pela antiga Catedral de Santana, construída em 1900 e demolida em 1978 (com as bênçãos do bispo, o alvará de demolição assinado pelo prefeito e os aplausos da sociedade, que berrava pelo "progresso"). Hoje, vivemos da nostalgia e das "fotografias na parede", como diz a famosa poesia de Drummond.
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Antiga catedral de Santana, demolida em 1978. (Acervo Foto Elite - Ponta Grossa) |
Entretanto, ainda assim é flagrante como ainda resistem pela cidade determinadas peculiaridades, determinadas paisagens que são o contraste entre o mundo bucólico já talvez sem lugar neste tempo, e a urbe que insiste em estender suas garras e ruas e parques e conjuntos habitacionais e redes de água e esgoto e linhas de transporte público, sempre insuficientes e ineficazes para os habitantes de todos os fundos de vale e espaços inexplorados da cidade, que se tornaram condomínios no melhor estilo "pombal".
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A beleza bucólica da Princesa dos Campos |
Desde que cheguei, fiz alguns passeios a pé por alguns bairros e pelo centro. O que pude constatar foi que o processo de metamorfose auto-destrutiva, baseado somente na especulação imobiliária e no produto de seus dividendos, assume uma nova fase nesta segunda década do século 21 - a verticalização absurda dos espaços urbanos. É impressionante o "boom" das novas construções, marcadamente de prédios com 15, 20 andares, que começaram a se proliferar desde uns 5 anos para cá, por quase toda cidade.
O que restou da antiga Ponta Grossa e suas particularidades urbanas vai aos poucos dando lugar para construções enormes, em bairros que jamais deveriam receber prédios gigantes, mas que que acabam tendo substituídos seus espaços abertos e longas vistas do horizonte, patrimônios de todos os princesinos, pela imposição de estranha, esdrúxula e distorcida visão de "crescimento urbano" e "progresso" sem planejamento, sem pensar nas pessoas, e que vai aos poucos inviabilizando qualquer ação urbana mais eficaz para a cidade de pouco mais de 350 mil habitantes.
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Cena comum: a patrola marca o início da construção de um novo prédio sobre os escombros das casas antigas |
Em todos o bairros por onde andei - Nova Rússia, Uvaranas, Oficinas, Olarias, Jardim Carvalho, Órfãs), encontrei obras, tapumes, terrenos baldios, terraplanagens, demolições, entulhos, prédios gigantes em construção, placas indicativas de novos empreendimentos e quiosques para vendas de apartamentos. O processo de demolição sistemática da cidade se manifesta uma vez mais, 40 anos depois do estúpido bota-abaixo da Catedral, do palácio episcopal, dos casarões, dos barracões e da rotunda da Rede, das instalações da indústria Adriática e das indústrias Wagner, e recentemente o prédio do Cine Império...
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Onde outrora havia um casarão, logo haverá um predião. |
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Tapume mostra apenas a ponta do iceberg |
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Ao longe, a antiga igrejinha de Uvaranas, vai sendo substituída como ponto de referência pelo prédio gigante que brota do chão |
A cidade ainda resiste, de qualquer forma. Ainda há poesia pelas esquinas, pelas colinas, pelos cantos e pelos campos da Princesa. Ainda se vê o horizonte - mesmo que a visão única do nascer e do por do sol no alto do centro velho já não seja mais possível como era, em alguns pontos.
Até quando resistirá?
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Prédios |
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Prédios que brotam do chão |
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Prédios que aparecem do nada |
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Prédios que se impõem e se tornam donos da paisagem, da vista, do sol, do céu, do espaço, da cidade inteira |
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Em breve, hospede-se em um glamuroso prédio de vidro, com todo conforto |
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Em Aleppo é parecido. Mas lá tem uma guerra. |
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Espigas tornam aos poucos PG num paliteiro |
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Será por isso que os beija-flores estão morrendo? |
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Muros que cercam a visão |
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Este céu tem seus dias contados |
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A facilidade em financiar seu apartamento |
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Qual o sentido em sequestrar a vista de quem não vai morar no alto da torre? |
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Ao fundo, o pavão misterioso católico: o bizarro disco-voador de ferro e vidro que substituiu a antiga catedral |
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18 andares. |
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Igreja dos Polacos |
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Em meio a tanta destruição do antigo, resistem as antigas casas de madeira |
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Mas o canteiro de obras parece espreitar os olhos da velha PG para roê-los |