terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Paraguay: reencontros, descobertas, emoções, alegrias

"The world is just a little town/
  Everybody tries to put us down"
                    Isolation, John Lennon

Entre os dias 4 e 8 de janeiro, visitei, pela terceira vez desde 2009, o Paraguai. Desta vez, estive em três locais: Ciudad del Este, Puerto Presidente Franco e Asunción. Pretendo contar um pouco desta visita na série de postagens que serão publicadas durante os próximos dias. Os três principais objetivos desta viagem foram cumpridos: reencontrar/ reforçar os laços de amizade que mantenho no Paraguai; comprar livros sobre a história da Guerra da Tríplice Aliança e da Guerra do Chaco, sobre Antropologia e Etnografia,  e também volumes da obra de Augusto Roa Bastos; andar pelas calles e conhecer um pouco melhor o mais antigo centro administrativo da América do Sul, conhecido como "la madre de ciudades" - antes que se instale qualquer controvérsia, não custa lembrar: Asunción foi fundada pelos espanhóis em 16 de agosto de 1537, como capital do Vice-Reinado do Prata; e Salvador, pelos portugueses em 29 de março de 1549, como sede do Governo-Geral do Brasil. A cidade é também, ao lado de Georgetown, Paramaribo e Caiena, das menos conhecidas das capitais Sul-Americanas.

"La otra piel", catálogo de etno-desenhos organizado por Luz Ayala Urbieta,
Secretaria Nacional de Cultura, Asunción, 2011. 

O impulso que me levou a voltar outra vez ao país vizinho está ligado a fatos que, se permanecem surpreendentes para os incautos, nada demais têm para quem se interessa com genuíno respeito sobre o povo paraguaio e sua trajetória - de resto, não apenas importante, mas quizás essencial para se compreenderem as conjunturas, maquinações, tragédias, aventuras, encontros e desencontros, carinhos e desinteligências, terrores e amores ocorridos ao longo dos séculos entre nossas duas nações irmãs. Uma compreensão superficial sobre o Paraguai (e também sobre Latino-América, os povos indígenas, a escravidão, o ouro, o diamante, o tropeirismo, as plumagens e a cana de açúcar, a doutrina cristã, as missões jesuíticas, as religiões originais dos povos autóctones e as religiões afro-americanas, o recente ciclo da soja, e também sobre a autodeterminação dos povos) sempre deixará lacunas na interpretação e tomada de consciência sobre a nossa própria trajetória, enquanto brasileiros. Isso, talvez, poderia ser suficiente como argumento para convencer a quem quer que pense que conhecer o Paraguai é fruto de excentricidade. Não é: e não é preciso nada mais do que um passo para, afinal, tomar coragem e passar alguns quilômetros além da fronteira física e geográfica, e com isso, também ultrapassar as fronteiras mentais que marcam a visão de muitos brasileiros sobre  a nação guarani.
"La otra piel" destaca trabalhos de campo realizados no Paraguai e no Brasil por inúmeros antropólogos,
entre os quais Guido Boggiani (1861-1902); Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e Darcy Ribeiro (1922-1997).
Uma série de sentimentos, pensamentos, emoções, e também leituras, reflexões, observações aproximações, opiniões, sempre profundamente pessoais e intuitivos, ao longo dos anos, moldaram meu interesse pelo Paraguai. Isso começou provavelmente quando eu tinha 12 anos de idade e estive pela primeira vez do outro lado da Ponte da Amizade, numa viagem de passeio que fiz com meu irmão, meu pai e dois amigos dele. A cidade àquele tempo ainda se chamava Puerto Stroessner - idolatria ao general-ditador que governou o país com mão de ferro entre 1954 e 1989, e morreu exilado no Brasil em 2006, sem ser preso pelos crimes cometidos durante o tempo em que esteve no poder. Nós frequentávamos o Paraguai, como a maior parte dos brasileiros o fazem até hoje, para comprar bugigangas: tênis "chinezinho"; mini-video-games; skates; e, a maior novidade mim e meu irmão (e, por extensão, nossos e nossas colegas de escola), chicletes em formato de bolinhas coloridas, exatamente como havia nos filmes americanos que passavam na Sessão da Tarde e na Tela Quente - simplesmente, impossíveis de se encontrar no Brasil daquele tempo.

Augusto Roa Bastos (1917-2005), autor do épico "Yo, el Supremo", que narra a trajetória de Francia, fundador do Paraguai,
recebeu o Prêmio Cervantes, maior distinção das literaturas de língua espanhola, em 1989.

Uma das impressões mais fortes para mim, naquele momento, foi o espanto que senti diante da visão dos jovens soldados do exército paraguaio, que patrulhavam as ruas do centro comercial fardados, com um capacete de guerra, armados com um fuzil carregado. Os adultos nos contaram que o serviço militar era obrigatório no Paraguai, e que se recrutavam meninos menores de idade. Por isso, ao observar os soldados que pareciam ser pouco mais velhos do que eu e meu mano, além de uma certa tristeza por sua condição, que em mim sublevava o medo de vê-los armados, me fazia ter certeza de que eu tivera muita sorte em ter nascido no lado brasileiro.
A figura do ditador Alfredo Stroessner, soberano do Paraguai por mais de três décadas, era absoluta, ao ponto da segunda maior cidade do país ter sido batizada com seu nome. (Foto: Centro Cultural El Cabildo, Asunción).

Com o passar do tempo, meu interesse pelo país menos conhecido do Cone Sul foi aumentando. Em busca do que seria o verdadeiro Paraguai, que eu intuía ser muito distinto dos clichês que continuam a se propagar no discurso comum dos brasileiros, eu passei a prestar atenção a tudo o que se referisse ao país: livros, música, notícias, história, nomenclaturas, palavras. Durante certo tempo, as informações eram quase sempre escassas, limitadas e difíceis de encontrar. Isso me levava a refletir sobre a condição peculiar do país vizinho: mesmo dividindo 1290 km de fronteira com o Brasil,  o Paraguai parecia (e de certa forma, continua a parecer) muitas vezes mais distante e isolado de nós que o Quirguistão ou o Laos. Sempre considerei isso esdrúxulo, e todas as vezes que posso, faço o possível para que esse estado "tão perto, tão longe" seja cada vez menos comum em nossas relações.

Essa postura me permitiu ter a sorte de, em 2008, em colaboração com o Grupo Cine de Novo, organizar a Mostra de Cinema Paraguaio, realizada em Ponta Grossa, Paraná, numa parceria que envolveu a pró-reitoria de extensão da UEPG e a Dirección Nacional del Audiovisual da Secretaría Nacional de Cultura do Paraguai.

A história dessa mostra merece um aparte: em agosto de 2007, eu conheci Julie Banks, à época representante da Dirección del Audiovisual, que viera à Curitiba para apresentar a produção cinematográfica paraguaia durante uma semana cultural do país, realizada por iniciativa das diplomacias brasileira e paraguaia na capital do Paraná - estado brasileiro que tem a mais próxima relação com o Paraguai. A programação incluía uma mostra de filmes paraguaios - algo até então completamente inédito no Brasil. Julie também proferiria uma palestra sobre a produção audiovisual no Paraguai. Durante a palestra, enquanto eu a ouvia falar sobre as condições particulares e complexas de se fazer cinema em seu país - de resto, similares às de todo o panorama do cinema latino-americano - e que ainda assim, conseguia realizar produção de qualidade, eu matutava: "Seria legal levar isso pra PG".

Fui falar com ela, pedi seu cartão, voltei pra PG, onde eu vivia, convoquei a tchurma do Cine de Novo e lhes apresentei a ideia. Nós havíamos realizado um ano antes uma mostra integral com os filmes de Sérgio Bianchi - que viera a Ponta Grossa especialmente para o evento, mais de 40 anos depois de haver deixado sua cidade natal para se tornar um dos grandes nomes do cinema brasileiro. Estávamos empolgados, e pela segunda vez, conseguimos firmar parceria com a PROEX-UEPG, então chefiada pelo escritor e professor Miguel Sanches Neto, que teve sensibilidade e coragem de encampar, oficializar e dar sustentação logística a ambos os eventos.  Daquele momento em diante, cultivo amizade com Julie Banks e sua família, o que facilitou e permitiu minhas duas visitas à Asunción.

Julie Banks, então chefe da Dirección Nacional del Audiovisual do Paraguay, é entrevistada por repórter da TV Educativa. Ponta Grossa, fevereiro de 2008.


Em 2009, estive em Asunción pela primeira vez. Naquela viagem (cujo relato pode ser encontrado neste link, neste aqui, e neste aqui também), conheci duas pessoas absolutamente encantadoras, que se tornaram uma referência pessoal, ética e emocional em minha vida. O aprendizado, respeito e recordações entre mim e eles são profundos: don Oscar Banks, pai de Julie, 92 anos de uma vida intensa e repleta de histórias, e Aurelia Amarilla Rivarola,  que aos 87 anos continua a trabalhar como professora de Didática Universitária na Universidade Metropolitana de Asunción. Ambos vivem hoje em um apartamento agradável no Distrito 6, entre as ruas Egidio Ayala e Juscelino Kubitschek de Oliveira, em Asunción, onde tive a honra e o prazer de ter sido seu hóspede por 5 dias, nesta viagem.

Minha amizade com Oscar e Aurelia foi para mim, desde sempre, algo profundamente forte, carregado de emoção e carinho, que são por sua vez fruto do profundo respeito que desde o primeiro momento em que os vi, em 2009, cultivo em relação à eles, como casal, e às suas respectivas histórias pessoais. Naquela vez, Oscar ainda podia dirigir (algo que não faz mais desde que sofreu uma queda que o deixou debilitado, em 2015). Saímos Aurelia, Oscar e eu num passeio por Asunción, que culminou em um café no centro da cidade, quando Aurelia me disse algo de que jamais esqueci: "André, yo sé que estoy vieja; la cara no miente. Pero en mi corazón, sientome como una niña de 17 años".
2009: no café em Asunción, depois de um passeio panorâmico no Lada Samara de Oscar.
Aurélia me disse que se sentia como "una niña de 17 años". Hoje, ela tem 87, e ele, 92.


Desta feita, me fiz seu hóspede e tive a oportunidade de ouvir e aprender com a história e o exemplo de suas vidas, suas experiências, suas vivências, passadas entre o Paraguai, a Argentina, o Uruguai, a Venezuela, o Brasil, os Estados Unidos, a Europa, o Norte da África. Narradas sempre com sobriedade, humildade, fraternidade, solidariedade, humanismo, hospitalidade, alegria, sorrisos, trabalho, coragem e ações que são exemplos, não apenas suas individualidades, mas todo o povo paraguaio, posto que ambos os dois, sozinhos ou como casal, são representantes autênticos das principais características de seu povo e seu país.

Em frente ao Centro Cultural El Cabildo, 2015: novamente com meus anfitriões e mestres da vida, 
muita emoção para matar as saudades dos amigos e do Paraguay.

Oscar Banks é uma figura ímpar: último remanescente da fundação da Faculdade de Medicina Veterinária do Paraguai, falante de 5 idiomas (espanhol, guarani, português, inglês e alemão), foi piloto de avião, administrador de empresas, diretor de safári, fundador da villa de Puerto Fátima. Uma vida inteira dedicada a seu país, sua família e à fraternidade universal. Aos 92 anos de idade, ostenta como poucos a alegria de uma vida longa, intensa e bem vivida, e colhe os louros das homenagens oficiais por sua contribuição à causa nacional - sempre proba, correta, honesta e justa - e o carinho e cuidado de sua família e seus amigos.

Aurélia Rivalora é um exemplo de vitalidade, com 87 anos é reconhecida como uma das grandes maestras - professoras do país. Continua a formar novas gerações na universidade, é requisitada como professora e pesquisadora, e busca através de seu exemplo pessoal, sua sólida formação intelectual, fazer com que a educação no Paraguai se fortaleça e seja democratizada. Além disso, é dona de profunda sensibilidade e senso de humor, além de grande compreensão estética, o que a faz ser dona de um charme pessoal único e marcante.

A vida dos dois é simplesmente uma linda história de amor: Oscar foi casado por mais de 50 anos, e ficou viúvo nos anos 2000. Aurélia estava também sozinha. Haviam sido amigos na juventude, e 65 anos depois, se reencontraram e, diante das circunstâncias, resolveram de comum acordo passar a viver juntos. Desde então, são um dos casais mais lindos do mundo: antes de tudo, amigos, que tratam de tomar conta um do outro e continuar a produzir, criar, trocar, simbolizar e sorrir, com 9 décadas de vida.

Aurélia e Oscar: quase nonagenários, exemplo de humor, alegria, companheirismo, hospitalidade e amor.


Esta primeira parte do relato foi concluída na Choperia do Tito. Está dedicada à memória de David Bowie.

Nos próximos dias, o relato continua.




10 comentários:

  1. Eita André sempre surpreendente! Fico sempre de queixo caído com seus posts incríveis e tocantes. Sinto-me lisonjeada por fazer parte do seu ciclo de amizades. Grande abraço, eternamente agradecida!

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    1. cÊ sabe que minha vida seria muito mais pobre sem sua amizade. obrigado!

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  2. Belo texto! Deu até vontade de conhecer Paraguai!

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  3. Adorei o texto!Me deu até vontade de conhecer o Paraguai!

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  4. que massa brou!! trouxe umas "ervas" pro tererê?!

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    1. salve, sádico. sim, trouxe, mas cê acredita que já tomei quase tudo? kkk. obrigado pela visita!

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  5. Ansioso pelo restante dos relatos. Lembrei de uma conversa que tivemos sobre as outras viagens ao Paraguai. Genial!

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  6. Legal. Graças a você André, estou louco pra conhecer melhor o Paraguai!

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    1. osmário, fico honrado em poder despertar a vontade de conhecer o país-irmão em outras pessoas. manda brasa. tem muita música no paraguay. há grandes luthiers por lá. a casa da música agustín barrios "mangoré" é fantástica. villa-lobos referiu-se a agustín barrios como "o inalcançável".

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