terça-feira, 20 de novembro de 2012

REFLEXÕES SOBRE O INOMINÁVEL

Hoje faz exatamente 129 dias desde a última postagem. 129 dias! Como eu pude abandonar por tanto tempo este blog? 

Deuses dos canaviais! Perdoai este vosso servo ingrato!! 
Leitores destes esporádicos Caldos de Cana! Compreendais que o autor deste blog passou por inúmeras situações inusitadas, surpreendentes, horripilantes, divertidas, auto-irônicas, mas todas permeadas por emoções o mais subjetivas, pessoais e profundas possíveis. Humanas, demasiado humanas emoções! Mas agora que o verão se aproxima, todos poderão refrescar a cuca novamente com o Caldo de Cana mais doce da blogosfera. I´m back! Aceita um docinho?
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Desde que fui diagnosticado com a lesão cerebral, cuja gravidade era notória, evidente, nua e crua, tive que tomar decisões. Quando você recebe a notícia de que há um tumor em seu cérebro, de repente, percebe que tem de decidir, em poucos segundos, o que fazer com sua vida. E isso acontece imediatamente após o  médico-residente, responsável pelas orientações pré-cirúrgicas lhe entregar um papel, e dizer: 

- Bom, agora que tudo foi explicado, você deve assinar este documento médico-contratual, em que afirma que está plenamente consciente de que será submetido a uma cirurgia no cérebro. Também declara saber que, em alguns casos específicos, diante de certas condições cirúrgicas e certas reações que variam entre pacientes, há registros de óbitos durante procedimentos cirúrgicos similares ao seu. Caso queira desistir do processo, você tem o direito de comunicar isso à equipe médica enquanto estiver consciente. Por favor, leia e assine aqui, em três vias. Use a rubrica nas demais folhas. Obrigado.

Eu já havia compreendido que, caso quisesse continuar vivo, seria necessário me entregar ao processo.  Havia algumas células anômalas, que por alguma razão, resolveram iniciar seu processo de crescimento ao lado de uma das minhas principais artérias cerebrais. Só me restava a cirurgia. E eu resolvi que sairia o melhor possível deste processo.

Decidi que não me importaria com o que aconteceria depois do processo cirúrgico, a não ser quando este depois se tornasse realidade. Não quero dizer, com isso, que me alienei: em todos os momentos, eu fiz questão de conversar com o mais novo herói de meu panteão, o Professor Doutor Murilo de Sousa Meneses, e toda sua equipe, a respeito dos procedimentos a que eu seria submetido. Sempre tive consciência de todos os riscos envolvidos, ouvi detalhes sobre a recuperação, o pós-operatório, e também fui informado claramente sobre o procedimento cirúrgico em si. 
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Assim, no dia 12 de julho de 2012, entre as 9 e as 10 horas de uma manhã fria, tipicamente curitibana, fui anestesiado com Propofol, e em 20 segundos, eu me encontrava dormindo profundamente. Quando voltei, cerca de 4 horas e meia depois, foi como se estivesse acordando de um sono profundo e muito tranquilo. Ouvi a voz da médica-anestesista chamando:

- André... André... André...
- Oi, doutora! Tudo bem?
- Tudo ótimo. A cirurgia foi perfeita. Retiramos toda a lesão. Agora, vamos levá-lo para a UTI, onde você ficará em observação pelas próximas 24 horas. 

Neste exato momento, me deu vontade de cantar. A primeira canção que me veio à lembrança foi o Samba da boa vontade, de Noel Rosa e Braguinha. Enquanto a médica e uma enfermeira guiavam minha cama rapidamente pelos corredores do hospital, eu cantarolava "viver alegre hoje é preciso/ conserva sempre o teu sorriso/ mesmo que a vida esteja feia/ e que vivas na pinimba/ passando a pirão de areia".

A médica me disse, assim que a música acabou, já no quarto da UTI:
- Olha, André. Eu já havia visto gente chorando, pedindo pela mãe, rezando, mas cantando samba, é a primeira vez.

Nesse estado de espírito, fui colocado na cama. Como nem tudo são rosas nesta vida, assim que me trocaram de lugar, percebi o pior: havia uma sonda uretral pendurada no meu pênis, para recolher urina. Delícia. 30 centímetros de um caninho emborrachado e liso enfiado na uretra. (Rapaz, isso vai doer MUITO para ser retirado, mas só os fortes sobreviverão). Da mesma forma como controlei a ansiedade antes da cirurgia, resolvi não sofrer por antecipação, e deixei de me preocupar com a sonda.
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 Momento Kim Jong iL.
 Momento Arnaldo Antunes.
Momento Boris Karloff.
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No quarto, havia uma TV de 30 polegadas. Deixei nos canais de música e fiquei ouvindo música erudita, jazz, e um pouco de rock, o tempo todo em que estive na UTI. Passei 27 horas lá. A cada duas horas, eu recebia doses de Decadron 4mg, Paracetamol 750mg. Recebi também duas doses da solução injetável de Tramal 100mg, por conta de fortes dores de cabeça. Foi minha primeira experiência com opióides, cujos efeitos eu conhecia apenas através da literatura.  Numa daquelas coincidências que só poderiam ocorrer com um paciente da UTI, depois de uma cirurgia cerebral, no mesmo instante em que eu senti o primeiro o efeito analgésico e reconfortante da droga, no canal de Jazz da TV, soavam os primeiros acordes de Out of this world, de John Coltrane. 
Ouvir John Coltrane sob o efeito de um opiáceo me lembrou de Ewan McGregor, afundando em um tapete vermelho no assoalho, ao som de Perfect day, numa das melhores cenas de Trainspotting. 
Eu gostei  realmente daquilo.
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Diria que todo o processo foi profundo, recheado de reflexões, análise das situações e auto-análise constante. Um aprendizado. Um curso intensivo de neurocirurgia para leigos, tendo seu próprio corpo como objeto de estudo. Acontecimento inusitado, ímpar. Em nenhum momento imaginei outra coisa que não  uma recuperação perfeita. Sempre tive absoluta convicção de que se tratava de um daqueles raros momentos que jamais se repetiriam da mesma maneira em minha vida.  Aceitei a complexidade do processo e reagi de acordo com isso.  

Penso ter me saído muito bem.
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Nunca fui supersticioso. Mas há outra coincidência que me divertiu bastante em toda essa história: na sexta-feira 13 de julho, eu estava internado na UTI, ouvindo Mozart, Bach, Haydn e Beethoven, com doses homeopáticas e pontuais de John Coltrane. Por um pequeno contratempo, a terceira consulta pós-operatória, pela qual eu esperava ansiosamente para ouvir os resultados positivos dos últimos exames, e ser declarado curado e finalmente poder, entre outras coisas, voltar a pedalar, foi transferida do dia 22 para o dia... 31 de outubro
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Noel Rosa no caminho pra UTI, Tramal e John Coltrane para dor de cabeça, 24 horas na UTI em plena sexta-feira 13, liberação total dos cuidados pós-operatórios em pleno Haloween. Se isso tudo não tivesse realmente acontecido comigo, da forma como está narrado neste post, eu confesso, teria dificuldades em acreditar. Aliás, algumas pessoas se demonstraram realmente surpresas com minha recuperação. Eu respondia, geralmente: "Se você está surpreso, imagine como eu estou". 
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Pra terminar, quero dizer que foi realmente divertido vivenciar tudo isso. Não vejo outra palavra para melhor definir esse acontecimento. Me chamem de maluco, se quiserem, mas talvez tenha sido o melhor que já me aconteceu, até o presente momento. E eu estou realmente decidido a superar, ou no mínimo igualar,  esse lampejo de iluminação e intensidade que me foi concedido por uma via que eu jamais poderia imaginar. Para fazer isso, tenho apenas dado sequência ao modo de pensar que antecedeu a cirurgia, que consiste em compreender o seguinte: não importa o que você sinta, nem o que sonhe, nem o que pense, nem o que deseje, a vida acontece agora, neste exato momento. E é neste exato momento que devemos tornar nossos sonhos, sentimentos, pensamentos e desejos concretos e reais. Alejandro Jodorowsky declarou uma vez: "O Paraíso é aqui. Se Deus não está aqui, não está em nenhum outro lugar. Não pode estar aqui e estar em outro lugar além. Só aqui. Tudo é aqui.".
Eu passei a levar a sério esta declaração, de uma forma realmente sincera.
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POST SCRIPTUM.

Uma das consequências da cirurgia foi a mudança de caminho. Resolvi voltar a me dedicar a um projeto musical, e junto com meus amigos Fabrício Cunha, Rodrigo Milek, Marcelo Teixeira e Vinícius Baniski, reunimos conjunto Cabide de Molambo (clique no link anterior e neste link aqui também par ver vídeos da banda) para produzir o espetáculo "A favela vai abaixo", com músicas de Sinhô e Noel Rosa. Este evento, na verdade, vinha sendo planejado antes mesmo da cirurgia, e sua concretização significa, para mim, uma libertação de tudo o que eu não quero fazer mas vinha fazendo de maneira desgostosa e sem sentido.
Fazem parte do repertório a canção de Sinhô que dá nome ao espetáculo, além de Sabiá, Fala meu louro, e também Último desejo e Positivismo, de Noel, entre outras composições. Não quero estragar a surpresa. 
Quinta-feira, publicarei o set list completo através da fanpage no facebook. Digite /molambos e nos encontre por lá.
O espetáculo acontece nesta quarta-feira, dia 21 de novembro, a partir das 20 horas, no Centro de Cultura, rua Doutor Colares, 436, em Ponta Grossa, Paraná. Vale lembrar que o conjunto não se apresenta em Ponta Grossa desde 2006. Então, vai ser um reencontro com nosso público.
Mesmo com isso, estamos abertos a convites para apresentações fora de PG, algo que realmente gostaríamos muito de fazer. Se você tem interesse ou conhece alguém que queira levar o Cabide tocar aí na sua cidade, por favor, entre em contato.
E aos que estão de bobeira em Ponta Grossa ou nas proximidades, compareçam! Vai ser um show antológico.





16 comentários:

  1. Sensacional, André. O que vale em experiências como esta é a intensidade. Espero poder revê-lo em meio às festas de final de ano para sentir essa transformação. Abraço bem forte.

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  2. corriqueiramente sinto fortes dores no terço-médio do lado direito da minha cabeça. tenho medo.

    estarei no centro de cultura, parabéns.

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    1. sugiro que vc procure um neurologista, de verdade. aliás, quem é você??? obrigado!

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  3. Caramba, eu sabia que você ia passar por alguma cirurgia, mas não imaginei que fosse algo tão complexo.
    Fico feliz que tudo tenha corrido tão bem e mais ainda por ter voltado a escrever no blog, sinal de uma recuperação muito boa.
    E toda essa história me lembrou de um livro que li uma vez: "O médico doente" que é um médico narrando o que sentiu durante um AVC, ele consciente relatando todos os sintomas e tudo mais, bem interessante também.
    Aposto que essa sua história pode facilmente render um livro também.
    No mais, uma grande abraço e o desejo de melhoras. Em breve nos encontramos num pedal por ai!

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    1. obrigado, gabriel! estou ansioso para voltar a pedalar, nem fale. vou fazer isso semana que vem. um abração!

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  4. acho q esse foi o marketing de evento mais profundo q eu já li, ehehe
    e eu gosto da sua cicatriz. bastante.
    :-*

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  5. Eu acho que a responsável por tudo isso foi a música... A vibração harmônica da música repercutiu em tudo, do centro de cada átomo, de cada célula, até o corpo como um todo. Foi a música. Nada melhor do que continuar tocando, cantando e divulgando essa harmonia para retribuir com gratidão e alegria a dádiva do renascimento. Um abraço apertado, novo André! :)!!

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    1. querida ágata, tenho saudades. obrigado pelos comentários e pela amizade. um grande beijo.

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  6. P.S. - Acho que eu sou um robô. Adorei a possibilidade de provar que não sou um robô para ter o comentário publicado e o simples questionamento da existência dessa situação me deu muito o que pensar. No entanto, quase me frustro ao conseguir publicá-lo apenas depois da quarta ou quinta vez que repeti as letrinhas, à maneira humana...

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  7. Que ótimo ler este texto. Saber que você está bem e, mais egoisticamente, saber que o Cabide está voltando! Espero poder ver em breve, porque estou no Rio e volto dia 22.

    "O Paraíso é aqui". Concordo plenamente. Mas é muito difícil alcançar o presente; que bom que você conseguiu.
    Seu texto vem em um momento de reflexão intenso na minha vida e serviu de grande inspiração. "E é neste exato momento que devemos tornar nossos sonhos, sentimentos, pensamentos e desejos concretos e reais". Não esquecerei disso.

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    1. escute aqui, denise: era pra vc se emocionar com meu texto, e não o contrário!

      obrigado!

      um beijão!!!

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  8. Chegou a hora...Tinha que chegar...Alguém tinha que tentar descobrir o que se passa nessa cabeça!

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    1. eu acho que tentar, até que tentaram. mas não sei se encontraram a solução.

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